terça-feira, 16 de novembro de 2010

palavras que nos salvam : Eduarda Chiote


CEGA TRAGICIDADE

Hoje possuí-te o corpo
que te havia
abandonado. Estavas branco,
acabado de morrer
cegamente.
Só a mim cabia o cobrir-te a nudez
com a toalha de banho
ou o abandonar-te
no quarto do hotel,
chamando o porteiro de
urgência.
Ainda há pouco,
tomado de contracções, o teu pénis enrijecera,
e, para meu espanto,
ejaculara sozinho
e atónito.
Lasso, pendera para o lado esquerdo,
tombando
sob a tua virilha: um pequeno animal
dócil.
Toquei-o leve.
Reagiu, enfastiado.
Sustentava-o ainda uma tristeza
terrena: o resto de um cheiro
bom. A sémen.
Bebi-to, debruçada sobre
o que atravessara essa deliciosa
ferida, interrogando-a: - Então… és tu, prazer
amado, o fim de um homem?
A alma não dava, nele, o mínimo sinal
de recusa.
Colhi-a em minha boca.
E foi nesse instante que me apercebi
de que o nosso exílio
não seria nunca definitivo.
Debrucei-me sobre o recorte dos teus lábios
e aspirei neles o sopro da minha
própria fala.
Queimava.
O teu corpo era agora o meu
– uma frieza como jamais havia sentido, definindo
as dês(razões) do meu copular
a morte.


Eduarda Chiote
in Não me Morras »» Lisboa »» & etc. »» 2004 »» pp. 24-25