«Do lado português, ou mais latamente da língua portuguesa, o quadro inclui [...], como não pode deixar de ser, Adolfo Caminha, outro brasileiro, autor de um romance de culto – Bom-Crioulo – hoje texto curricular, que ao ser publicado em 1895 provocou tumulto na Marinha (o autor havia sido oficial de carreira antes que eu um escândalo passional de natureza heterossexual tivesse precipitado a sua demissão em 1889), por descrever sem peias a relação amorosa entre um grumete louro, “Aleixo”, e um marinheiro negro, “Amaro” (o Bom-Crioulo). Caminha não poupa nos detalhes [...]. Só noventa anos mais tarde o livro saiu da clandestinidade, voltando aos prelos, às livrarias, e às bibliotecas públicas e escolares.»
Eduardo Pitta, Fractura: A Condição Homossexual na Literatura Portuguesa Contemporânea. Coimbra: Angelus Novus, 2003; pp. 8-9.
Adolfo Caminha, autor com pouco reconhecimento pela crítica da época, publicou Bom-Crioulo em 1895 e tornou-se importante só com os estudos GLQ que tonaram esta obra como exemplar na intriga e na publicação prematura.
O herói do romance é Bom-Crioulo (Amaro), escravo negrão e foragido, torna-se marinheiro de muito músculo, força e potência, e a bordo apaixona-se por Aleixo, mancebo branco, louro, olhos azuis, gosto apurado e orientação sexual indefinida que acaba por deixar de corresponder a Bom-Crioulo, provocando neste último enorme frustração, desalento e retirando-lhe a vontade de viver. Ah, pelo meio, Aleixo acaba por desenvolver uma relação com uma portuguesa de carnes volumosas que será a sua perdição.
Não tenho muito a dizer sobre o livro que devorei mal reparei que tinha saído por cá (foi já talvez em Fevereiro, mas na altura, faltou-me tempo e paciência). Das minhas impressões de leitura, tenho a dizer que gostei particularmente da escrita excitante, e com a qual me identifiquei; elogio a coragem, o talento, a sensualidade que Caminha pôs no texto, apesar de apresentar ainda o modelo do homem mais velho que se apaixona pelo mais novo, mas fazendo prevalecer os sentimentos de Bom-Crioulo: o amor. À excepção de breves e curtas referências, a relação homossexual é sempre perspectivada do ponto de vista psicológico de um homem que aprende a conviver com os seus sentimentos e a aceitar-se, sem juízos de valor ou considerações pejorativas sobre esse mesmo amor (ao contrário da visão veiculada em O Barão de Lavos de Abel Botelho que comecei a ler com pouco, muito pouco entusiasmo), que se torna tão natural como qualquer outro, não fosse a tendência obsessiva de Bom-Crioulo.
Sobre o livro: da literatura | um voo cego a nada | maurice 1 & 2 | graphic_diary | time outO herói do romance é Bom-Crioulo (Amaro), escravo negrão e foragido, torna-se marinheiro de muito músculo, força e potência, e a bordo apaixona-se por Aleixo, mancebo branco, louro, olhos azuis, gosto apurado e orientação sexual indefinida que acaba por deixar de corresponder a Bom-Crioulo, provocando neste último enorme frustração, desalento e retirando-lhe a vontade de viver. Ah, pelo meio, Aleixo acaba por desenvolver uma relação com uma portuguesa de carnes volumosas que será a sua perdição.
Não tenho muito a dizer sobre o livro que devorei mal reparei que tinha saído por cá (foi já talvez em Fevereiro, mas na altura, faltou-me tempo e paciência). Das minhas impressões de leitura, tenho a dizer que gostei particularmente da escrita excitante, e com a qual me identifiquei; elogio a coragem, o talento, a sensualidade que Caminha pôs no texto, apesar de apresentar ainda o modelo do homem mais velho que se apaixona pelo mais novo, mas fazendo prevalecer os sentimentos de Bom-Crioulo: o amor. À excepção de breves e curtas referências, a relação homossexual é sempre perspectivada do ponto de vista psicológico de um homem que aprende a conviver com os seus sentimentos e a aceitar-se, sem juízos de valor ou considerações pejorativas sobre esse mesmo amor (ao contrário da visão veiculada em O Barão de Lavos de Abel Botelho que comecei a ler com pouco, muito pouco entusiasmo), que se torna tão natural como qualquer outro, não fosse a tendência obsessiva de Bom-Crioulo.
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Citações:
«Dias e dias correram. A bordo todos o estimavam como na fortaleza, e a primeira vez que o viram, nu, uma bela manhã, depois da baldeação, refestelando-se num banho salgado – foi um clamor! Não havia osso naquele corpo de gigante: o peito largo e rijo, os braços, o ventre, os quadris, as pernas, formavam um conjunto respeitável de músculos, dando uma ideia de força física sobre-humana, dominando a maruja, que sorria boquiaberta diante do negro. Desde então Bom-Crioulo passou a ser considerado um “homem perigoso” exercendo uma influência decisiva no espírito daquela gente, impondo-se incondicionalmente, absolutamente, como o braço mais forte, o peito mais robusto de bordo. [...] Contava então cerca de trinta anos e trazia gola de marinheiro de segunda classe» (pp. 26-27).
«Sua amizade ao grumete nascera, de resto, como nascem todas as grandes afeições, inesperadamente, sem precedentes de espécie alguma, no momento fatal em que seus olhos se fitaram pela primeira vez. Esse movimento indefinível que acomete ao mesmo tempo duas naturezas de sexos contrários, determinando o desejo fisiológico da posse mútua, essa atracção animal que faz o homem escravo da mulher e que em todas as espécies impulsiona o macho para a fêmea, sentiu-a Bom-Crioulo irresistivelmente ao cruzar a vista pela primeira vez com o grumetezinho. Nunca experimentara semelhante coisa, nunca homem algum ou mulher produzira-lhe tão esquisita impressão, desde que se conhecia! Entretanto, o certo é que o pequeno, uma criança de quinze anos, abalara toda a sua alma, dominando-a, escravizando-a logo, naquele mesmo instante, como a força magnética de um imã» (p. 28).
«Nas horas de folga, no serviço, chovesse ou caísse fogo em brasa do céu, ninguém lhe tirava da imaginação o petiz: era uma perseguição de todos os instantes, uma ideia fixa e tenaz, uma relaxamento da vontade irresistivelmente dominada pelo desejo de unir-se ao marujo, como se ele fora de outro sexo, de possui-lo, de tê-lo junto a si, de amá-lo, de gozá-lo!...
Ao pensar nisso Bom-Crioulo transfigurava-se de um modo incrível, sentindo ferroar-lhe a carne, como a ponta de um aguilhão, como espinhos de urtiga brava, esse desejo veemente – uma sede tantálica de gozo proibido, que parecia queimar-lhe por dentro as vísceras e os nervos...
Não se lembrava de ter amado nunca ou de haver sequer arriscado uma dessas aventuras tão comuns na mocidade, em que entram mulheres fáceis, não: pelo contrário, sempre fora indiferente a certas cousas, preferindo antes a sua pândega entre rapazes a bordo mesmo, longe das intriguinhas e fingimentos de mulher. Sua memória registava dois fatos apenas contra a pureza quase virginal de seus costumes, isso mesmo por uma eventualidade milagrosa: aos vinte anos, e sem o pensar, fora obrigado a dormir com uma rapariga em Angra dos Reis, perto das cachoeiras, por sinal dera péssima cópia de si como homem; e mais tarde, completamente embriagado, batera em casa de uma francesa no largo do Rocio, donde saíra envergonhadíssimo, jurando nunca mais se importar com “essas cousas”...» (p. 32)
«Tudo avultava desmesuradamente em sua imaginação de marinheiro de primeira viagem. Bom-Crioulo tinha prometido levá-lo aos teatros, ao Corcovado (outra montanha donde se avistava a cidade inteira e o mar...), à Tijuca, ao Passeio Público, a toda parte. Haviam de morar juntos, num quarto da rua da Misericórdia, num comodozinho de quinze mil-réis onde coubessem duas camas de ferro, ou mesmo uma só, larga, espaçosa... Ele, Bom-Crioulo, pagava tudo com o seu soldo. Podia-se viver uma vida tranquila. Se continuassem no mesmo navio, não haveria cousa melhor; se, porém, a sorte os separasse dava-se jeito. Nada é impossível debaixo do céu» (p. 36).
«A humidade, o frio que entra pelas escotilhas, aquele ambiente glacial comunicava-lhe um desejo louco de amor físico, um enervamento irresistível. Unido ao grumete num quase abraço, a mão no ombro de Aleixo que, àquele contacto, experimentava uma vaga sensação de carícia, o negro esquecia todos os seus companheiros, tudo que o cercava para só pensar no grumete, no “seu bonitinho” e no futuro dessa amizade inexplicável.» (p. 38).
«Nesse dia Príapo jurou chegar ao cabo da luta. Ou vencer ou morrer! – Ou o pequeno se resolvia ou estavam desfeitas as relações. Era preciso resolver “aquilo”.
[...] Uma vez lado a lado com o grumete, sentindo-lhe o calor do corpo roliço, a branda tepidez daquela carne desejada e virgem de contactos impuros, um apetite selvagem cortou a palavra ao negro. A claridade não chegava sequer à meia distância do esconderijo onde eles tinham se refugiado. Não se viam um ao outro: sentiam-se, adivinhavam-se por baixo dos cobertores.
Depois de um silêncio cauteloso e rápido, Bom-Crioulo, aconchegando-se ao grumete, disse-lhe qualquer cousa no ouvido. Aleixo conservou-se imóvel, sem respirar. Encolhido, as pálpebras cerrando-se, instintivamente de sono, ouvindo, com o ouvido pegado ao convés, o marulhar das ondas na proa, não teve ânimo de murmurar uma palavra. Viu passarem, como em sonho, as mil e uma promessas de Bom-Crioulo: o quartinho da Rua da Misericórdia no Rio de Janeiro, os teatros, os passeios....; lembrou-se do castigo que o negro sofrera por sua causa; mas não disse nada. Uma sensação de ventura infinita espalhava-se em todo o corpo. Começava a sentir no próprio sangue impulsos nunca experimentados, uma como vontade ingénita de ceder aos caprichos do negro, de abandonar-se-lhe para o que ele quisesse – uma vaga distensão dos nervos, um prurido de passividade...
— Ande logo!, murmurou apressadamente, voltando-se.
E consumou-se o delito contra a natureza» (pp. 42-43).
«Entretanto, Bom-Crioulo começava a sentir uns longes de tristeza na alma, cousa que raríssimas vezes lhe acontecia. [...] Instintivamente seu olhar procurava o pequeno, acendia-se num desejo sôfrego de vê-lo sempre, sempre, ali perto, vivendo a mesma vida de obediência e de trabalho, crescendo a seu lado como um irmão querido e inseparável. [...] Ao pensar nisso Bom-Crioulo sentia uma febre extraordinária de erotismo, um delírio invencível de gozo pederasta... Agora compreendia que só no homem, no próprio homem, ele podia encontrar aquilo que debalde procurara nas mulheres.
Nunca se apercebera de semelhante anomalia, nunca em sua vida tivera a lembrança de perscrutar suas tendências em matéria de sexualidade. As mulheres o desarmavam para os combates do amor, é certo, mas também não concebia, por forma alguma, esse comércio grosseiro entre indivíduos do mesmo sexo; entretanto, quem diria!, o fato passava-se agora consigo próprio, sem premeditação, inesperadamente. E o mais interessante é que “aquilo” ameaçava ir longe, para mal de seus pecados... Não havia jeito, senão ter paciência, uma vez que a “natureza” impunha-lhe esse castigo.» (p. 47).
«Bom-Crioulo ficou extático! A brancura láctea e maciça daquela carne tenra punha-lhe frémitos no corpo, abalando-o nervosamente de um modo estranho, excitando-o como uma bebida forte, atraindo-o, alvoroçando-lhe o coração. Nunca vira formas de homem tão bem torneadas, braços assim, quadris rijos e carnudos como aqueles...» (pp. 59-60).
«Sua amizade ao grumete já não era lúbrica e ardente: mudara-se num sentimento calmo, numa afeição comum, sem estos febris nem zelo de amante apaixonado.
Quase um ano de convivência fora bastante para que ele se identificasse absolutamente com o grumete, para que o ficasse conhecendo, e a convicção de que Aleixo não o traía, entregando-se à fúria selvagem de qualquer marmanjo, a certeza de que era respeitado, a certeza que era respeitado pelo outro, comunicava-lhe essa tranquilidade confiante de marido feliz, de capitalista zeloso que traz o dinheiro guardado inviolavelmente.
Decorreu quase um ano sem que o fio tenaz dessa amizade misteriosa, cultivada no alto da Rua da Misericórdia, sofresse o mais leve abalo. Os dois marinheiros viviam um para o outro: completavam-se.
— Vocês acabam tendo filhos, gracejava D. Carolina.
Nunca vira dois homens gostarem-se tanto! Bom-Crioulo não era tolo nem nada... Tolo era quem se fiasse nele...» (p. 63).
«Nas horas de folga, no serviço, chovesse ou caísse fogo em brasa do céu, ninguém lhe tirava da imaginação o petiz: era uma perseguição de todos os instantes, uma ideia fixa e tenaz, uma relaxamento da vontade irresistivelmente dominada pelo desejo de unir-se ao marujo, como se ele fora de outro sexo, de possui-lo, de tê-lo junto a si, de amá-lo, de gozá-lo!...
Ao pensar nisso Bom-Crioulo transfigurava-se de um modo incrível, sentindo ferroar-lhe a carne, como a ponta de um aguilhão, como espinhos de urtiga brava, esse desejo veemente – uma sede tantálica de gozo proibido, que parecia queimar-lhe por dentro as vísceras e os nervos...
Não se lembrava de ter amado nunca ou de haver sequer arriscado uma dessas aventuras tão comuns na mocidade, em que entram mulheres fáceis, não: pelo contrário, sempre fora indiferente a certas cousas, preferindo antes a sua pândega entre rapazes a bordo mesmo, longe das intriguinhas e fingimentos de mulher. Sua memória registava dois fatos apenas contra a pureza quase virginal de seus costumes, isso mesmo por uma eventualidade milagrosa: aos vinte anos, e sem o pensar, fora obrigado a dormir com uma rapariga em Angra dos Reis, perto das cachoeiras, por sinal dera péssima cópia de si como homem; e mais tarde, completamente embriagado, batera em casa de uma francesa no largo do Rocio, donde saíra envergonhadíssimo, jurando nunca mais se importar com “essas cousas”...» (p. 32)
«Tudo avultava desmesuradamente em sua imaginação de marinheiro de primeira viagem. Bom-Crioulo tinha prometido levá-lo aos teatros, ao Corcovado (outra montanha donde se avistava a cidade inteira e o mar...), à Tijuca, ao Passeio Público, a toda parte. Haviam de morar juntos, num quarto da rua da Misericórdia, num comodozinho de quinze mil-réis onde coubessem duas camas de ferro, ou mesmo uma só, larga, espaçosa... Ele, Bom-Crioulo, pagava tudo com o seu soldo. Podia-se viver uma vida tranquila. Se continuassem no mesmo navio, não haveria cousa melhor; se, porém, a sorte os separasse dava-se jeito. Nada é impossível debaixo do céu» (p. 36).
«A humidade, o frio que entra pelas escotilhas, aquele ambiente glacial comunicava-lhe um desejo louco de amor físico, um enervamento irresistível. Unido ao grumete num quase abraço, a mão no ombro de Aleixo que, àquele contacto, experimentava uma vaga sensação de carícia, o negro esquecia todos os seus companheiros, tudo que o cercava para só pensar no grumete, no “seu bonitinho” e no futuro dessa amizade inexplicável.» (p. 38).
«Nesse dia Príapo jurou chegar ao cabo da luta. Ou vencer ou morrer! – Ou o pequeno se resolvia ou estavam desfeitas as relações. Era preciso resolver “aquilo”.
[...] Uma vez lado a lado com o grumete, sentindo-lhe o calor do corpo roliço, a branda tepidez daquela carne desejada e virgem de contactos impuros, um apetite selvagem cortou a palavra ao negro. A claridade não chegava sequer à meia distância do esconderijo onde eles tinham se refugiado. Não se viam um ao outro: sentiam-se, adivinhavam-se por baixo dos cobertores.
Depois de um silêncio cauteloso e rápido, Bom-Crioulo, aconchegando-se ao grumete, disse-lhe qualquer cousa no ouvido. Aleixo conservou-se imóvel, sem respirar. Encolhido, as pálpebras cerrando-se, instintivamente de sono, ouvindo, com o ouvido pegado ao convés, o marulhar das ondas na proa, não teve ânimo de murmurar uma palavra. Viu passarem, como em sonho, as mil e uma promessas de Bom-Crioulo: o quartinho da Rua da Misericórdia no Rio de Janeiro, os teatros, os passeios....; lembrou-se do castigo que o negro sofrera por sua causa; mas não disse nada. Uma sensação de ventura infinita espalhava-se em todo o corpo. Começava a sentir no próprio sangue impulsos nunca experimentados, uma como vontade ingénita de ceder aos caprichos do negro, de abandonar-se-lhe para o que ele quisesse – uma vaga distensão dos nervos, um prurido de passividade...
— Ande logo!, murmurou apressadamente, voltando-se.
E consumou-se o delito contra a natureza» (pp. 42-43).
«Entretanto, Bom-Crioulo começava a sentir uns longes de tristeza na alma, cousa que raríssimas vezes lhe acontecia. [...] Instintivamente seu olhar procurava o pequeno, acendia-se num desejo sôfrego de vê-lo sempre, sempre, ali perto, vivendo a mesma vida de obediência e de trabalho, crescendo a seu lado como um irmão querido e inseparável. [...] Ao pensar nisso Bom-Crioulo sentia uma febre extraordinária de erotismo, um delírio invencível de gozo pederasta... Agora compreendia que só no homem, no próprio homem, ele podia encontrar aquilo que debalde procurara nas mulheres.
Nunca se apercebera de semelhante anomalia, nunca em sua vida tivera a lembrança de perscrutar suas tendências em matéria de sexualidade. As mulheres o desarmavam para os combates do amor, é certo, mas também não concebia, por forma alguma, esse comércio grosseiro entre indivíduos do mesmo sexo; entretanto, quem diria!, o fato passava-se agora consigo próprio, sem premeditação, inesperadamente. E o mais interessante é que “aquilo” ameaçava ir longe, para mal de seus pecados... Não havia jeito, senão ter paciência, uma vez que a “natureza” impunha-lhe esse castigo.» (p. 47).
«Bom-Crioulo ficou extático! A brancura láctea e maciça daquela carne tenra punha-lhe frémitos no corpo, abalando-o nervosamente de um modo estranho, excitando-o como uma bebida forte, atraindo-o, alvoroçando-lhe o coração. Nunca vira formas de homem tão bem torneadas, braços assim, quadris rijos e carnudos como aqueles...» (pp. 59-60).
«Sua amizade ao grumete já não era lúbrica e ardente: mudara-se num sentimento calmo, numa afeição comum, sem estos febris nem zelo de amante apaixonado.
Quase um ano de convivência fora bastante para que ele se identificasse absolutamente com o grumete, para que o ficasse conhecendo, e a convicção de que Aleixo não o traía, entregando-se à fúria selvagem de qualquer marmanjo, a certeza de que era respeitado, a certeza que era respeitado pelo outro, comunicava-lhe essa tranquilidade confiante de marido feliz, de capitalista zeloso que traz o dinheiro guardado inviolavelmente.
Decorreu quase um ano sem que o fio tenaz dessa amizade misteriosa, cultivada no alto da Rua da Misericórdia, sofresse o mais leve abalo. Os dois marinheiros viviam um para o outro: completavam-se.
— Vocês acabam tendo filhos, gracejava D. Carolina.
Nunca vira dois homens gostarem-se tanto! Bom-Crioulo não era tolo nem nada... Tolo era quem se fiasse nele...» (p. 63).
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À falta de ilustração mais adequada...
© David LaChapelle, Bob Paris and Rod Jackson, 1994 (anteriormente colocada aqui)
À falta de ilustração mais adequada...
© David LaChapelle, Bob Paris and Rod Jackson, 1994 (anteriormente colocada aqui)
Bem... agora que me aguçaste o apetite, tenho de ler o resto!
ResponderEliminarA foto está para lá de Querelle: está definitivamente "In the navy". ;D
que ficha de leitura tão bem feita. realmente, quem sabe, sabe.
ResponderEliminar:-) Já o li há anitos, depois de dar com a sua edição online. Ah e a fotografia, julgo de a ver numa Details num anúncio da Diesel, julgo, e sempre me fez lembrar, sei lá porquê, com a fotografia do beijo do Cartier Bresson
ResponderEliminarEu conheci esta obra de Caminha muito recentemente e gostei de a devorar - foi o que literalmente aconteceu. A ficha de leitura é completíssima, quando não tiveres lugar na Educação, podes ir para bibliotecário! eh eh eh
ResponderEliminarConcordo com o Manuel no que toca a foto, remete para a foto do beijo dos namorados parisienses, ou a do marinheiro que beija uma miúda em Times Square, julgo que ambas são do Cartier-Bresson e sim, confirmo, esta do LaChapelle foi usada para um anúncio da DIESEL.
E, para variar, já me estiquei a comentar...
Comentar um livro, não é so dizer que se gosta dele ou não; com todo o respeito ao bom critico literário que é Eduado Pitta, eu que li, o seu comentário a este livro (do qual citas uma passagem), esta critica é muito mais completa e provoca uma enorme vontade de o ler - as citações estão excelentemente escolhidas...
ResponderEliminarQuanto à foto e como que o Cartier-Bresson estivesse a fotografar uma cena do Querelle!
Abraço.
Também já conhecia esta fotografia fantástica. No entanto dá a impressão que se eles se entusiamam em demaisa vão parar á água. :)
ResponderEliminarO livro pareceu-me interessante, ando sem muito tempo para leituras mas se o encontrar compro.
Um abraço.
► Catatau, tens mesmo de ler! vale o tempo! de facto, há muito de querelle nesta foto, de resto faz parte do imaginário muito antes do filme!
ResponderEliminar► Innersmile, olha que não! só engano bem!
► Manuel, esta foto fez mesmo parte dessa campanha da Diesel há uns anos bons. além de muito querelle é muito cartier bresson, sim senhor!
► Graphic, bibliotecário? queres-me como bibliotecário, é? hummm, vou pensar no assunto, mas com a crise na leitura, vale mais continuar no ensino. Tu nunca te esticas a comentar, rapaz! É um prazer ter-te por aqui!
► Pinguim, que grande elogio! não sei, mas repito: engano bem!
► Special, nunca tinha pensado na água ali tão perto! e com tamanha euforia!... tens a hipótese das edições on line!
Abraços