Como estive fora, chegar e actualizar-me demorou um bocado. O destaque dado à ficção gay portuguesa pelo
Ípsilon foi uma dessas actualizações. Só comecei a ler ontem o dossier, com paragens pelo meio (sim, lá na aldeia não tinha como conseguir o jornal). De modo rápido, tem interesse e desempenha um papel muito importante pela abordagem que faz e pelos testemunhos dos autores; contudo, não me apresenta nada de radicalmente novo, à excepção do romance de Rosa Lobato Faria.
A interrogação no título deste post vem na sequência do texto que
Henrique Raposo escreveu e da respectiva resposta de
Eduardo Pitta. No título, Henrique Raposo afirma que “
só há boa ou má literatura. O ‘gay’ não é para aqui chamado”. Lendo o texto, numa primeira impressão, quase sou tentado a concordar com Henrique Raposo, com a sua argumentação de que a escrita não depende da identidade sexual de X ou Y ou de que a classificação encerra os escritores num gueto, conferindo “
‘respeitabilidade’ a escritores medíocres”, entre outros pontos. Eu não concordo com guetos, separatismos, nem com a falta de abertura. Portanto, até poderei achar que quanto mais universal ou abrangente for uma classificação, mais indivíduos se identificarão com ela. Acontece que, como apreciador de literatura e homossexual que sou, me custa ver apagada uma faceta que faz com que me identifique
mais com certo texto em particular.
Vamos por pontos. Henrique Raposo refere que “
esta deriva identitária não ajuda em nada na apreciação das obras e dos autores”; a resposta de Eduardo Pitta parece-me esclarecedora: “
o adjectivo acrescenta, não subtrai”. Desconheço porque há-de retirar mérito ou inviabilizar a fruição da obra de arte. Não percebo. Ou melhor, percebo que existe um receio ciclópeo em reconhecer a temática homossexual, gay ou homoerótica, em se saber que aquele(a) criador(a) é/ foi homossexual. Percebo ainda que há pessoas que ficam muito perturbadas quando essas dimensões são convocadas. Então, tem tudo que ver com preconceito e com o medo de que alguma coisa nos invada, nos adultere o íntimo ou nos castre. Trata-se do receio visceral de fruir o que nos perturba.
Outro ponto: numa escrita, seja a de Pitta ou de qualquer outro criador, não interessa só a forma como se apresenta: o conteúdo é essencial e tão ou mais importante que a forma. Deste modo, o sexo, seja em que obra for, não alimenta só a escrita, ele representa uma dimensão humana basilar, mas que por causa de uma certa moral se tornou um tabu difícil de desmontar. Mesmo quando se fala de obra (auto)biográfica, facilita obturar a questão do sexo, porque incomoda, fere susceptibilidades, evitando pois aborrecimentos. Pessoalmente, trata-se de uma problemática que gosto de focar: a relação entre vida, escrita, e representações da sexualidade, do sexo, da orientação sexual – são coisas, obviamente, diferentes (mas,
Denise, apesar de ter lido e escrito umas coisitas, ainda não sou especialista em estudos homoeróticos).
Diz ainda Henrique Raposo que “
a qualidade da escrita de Y ou X não depende do sexo homo ou hetero”; aqui estou completamente de acordo e nada a acrescentar, sempre foi assim e continuará a ser; aliás, não precisa de haver sexo nenhum para ser uma obra maior (já a sexualidade, essa está sempre latente).
Noutro
texto, respondendo à resposta de Eduardo Pitta, Henrique Cardoso regista: “
o termo ‘literatura gay’ refere-se à identidade privada do homem que, por acaso, é autor. O facto de X ser gay só deve interessar a quem lida com ele privadamente. O lado humano é irrelevante quando analisamos o autor”. Nada disto me parece correcto: a fuga ao historicismo literário levou a que o autor fosse morto, arredado dos textos que ele próprio criou; mas com os pós-estruturalismo, pós-modernismo, desconstrutivismo, e o fim das verdades absolutas, a coisa alterou-se. Acho que ninguém pensa em ler hoje um livro sem ver o seu autor, em todas as dimensões relevantes. Logo, a identidade privada é uma dimensão relevante, inclusive para uma correcta leitura e nada disso é por acaso – há razões para ser como é. Afinal – um exemplo –, quantas vezes se identificou (e continua) o
tu na poesia de Eugénio de Andrade com uma figura feminina? É a mesma coisa? É indiferente? Será com certeza uma leitura pobre, deficiente e incorrecta, no mínimo. Poderá perguntar-se: mas que importa? Bom, se não importa, porquê o tom de verdade, de autoridade incontestável em matéria de literatura por parte de quem o lê, ignorando esse facto? A literatura (ou qualquer outra arte) não existe isolada, comunica com todas as áreas do saber; bem como a sua fruição, que depende em absoluto das capacidades do leitor. As fronteiras estão lá – na obra –, mas cabe ao leitor saber achá-las, informando-se. Quando se lê, lê-se com a vida, com a experiência que se carrega. Na escrita, acontece exactamente o mesmo. Existe é muita gente que prefere ignorar a informar-se – o que os olhos não vêem o coração não sente, certo?
Quanto à literatura ser “
mera plataforma sexual”: nada choca e atrai mais que o sexo, a violência e o sangue (a morte, portanto). A literatura não é, de facto, uma plataforma, mas toda a arte (como a vida, aliás) vive do sexo, do escândalo, da provocação – e não só do erotismo –, escondendo-o ou revelando-o, desde Lascaux à contemporaneidade. E nada disto retira o mérito à obra de X ou Y.
Henrique Raposo diz ainda que, se a “
‘literatura gay’ é exclusiva de homens gays, logo, é um clube e não um género”. Também não concordo: os géneros literários são categorias históricas: nascem, morrem, evoluem, modificam-se, sendo possível estabelecer-lhes, dependendo dos casos, uma cronologia. Como escreveu Pitta, o conceito de literatura gay tem 38 anos: as balizas, neste caso, são fáceis de delinear.
Antes de mais,
literatura não é um
género. Na literatura, distinguem-se modos, géneros, subgéneros. Recorrer a literatura gay é um modo simplista de dizer que aquela obra, independentemente do modo, género ou subgénero, apresenta uma temática homoerótica (i.e., desejo sexual em que o objecto e o sujeito pertencem ao mesmo sexo biológico, sem precisarem de partilhar a mesma orientação sexual). Desta forma, não me parece possível existir um género homoerótico: existe uma temática que se assume como categoria essencial para a classificação como gay (o mesmo acontece na literatura autobiográfica, com a escrita da vida do
eu). Além disso, se tomarmos os exemplos de
Eduardo Pitta e de
Denise Estrócio, os termos são mutantes constantes e dependem da perspectiva como se encara a instituição
literatura. Parece-me querer prolongar o preconceito quando se afirma que “
nem toda a gente pode escrever um romance gay”, ao passo que “
qualquer pessoa pode escrever um policial”. Sem entrar no pormenor do uso do verbo “poder”, com este raciocínio ignora-se que criadores não-homossexuais tenham criado obras de temática homoerótica e que escritores homossexuais nunca tenham escrito uma linha sobre o assunto. Não se pode é confundir a obra e a vida, isso é que não; embora seja indiscutível que às vezes ambas coincidem, mas, portanto, não constitui condição
sine qua non.
Sinceramente, considero a literatura algo maior e amplo, onde cabem muitos géneros e subgéneros (mesmo num momento em que continua a crise dos géneros). A classificação gay, a meu ver, abrange uma multiplicidade de géneros e aplica-se a obras com características próprias de um universo que, graças a elementos particulares, não é nem pode ser legível de igual modo por todos (lá está, depende das capacidades de leitura de cada um). Possuindo ainda uma dimensão
sociocultural (além da
histórica e
estética, cf. Carlos Reis,
O Conhecimento da Literatura: Introdução aos Estudos Literários, p. 24), desempenha um papel fundamental na criação de uma identidade de grupo. Assim sendo, trata-se de um dos alicerces para o crescimento saudável de seres humanos que precisam de raízes, tal como todos os outros, para se situarem e a partir dos quais podem crescer.
Motivo para existir a literatura gay? Bom, já citei em vários lados, mas acho que posso repetir o José Augusto Mourão: “
Para quê uma nova ortodoxia literária, um novo canon? Quem, ao ler um romance em que um casal homem-mulher tem relações sexuais pensa que está a ler um romance heterossexual? A conclusão poderia ser esta: em tempos de guerra contra a repressão justifica-se que a escrita seja cruz ou espada. Virá um tempo em que tudo desaguará na praia sem fragor, sem publicidade, sem agrura” (in CASCAIS, António Fernando (ed.). 2004.
Indisciplinar a Teoria: Estudos Gays, Lésbicos e Queer. Lisboa: Fenda, p. 292).