quinta-feira, 7 de agosto de 2008

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Hoje, cito-me num texto descoberto nas arrumações e que se reporta a 2001, a um episódio imediatamente pré-Zé (nem de propósito, esta queda livre).




estados [des]unidos

De mão dada com o seu amor, sobre areia húmida, corre e grita que é seu e que lhe pertence. Agarra-o, abraça-o, beija-o para nunca o perder. Para ter a certeza que está à sua frente, ao seu lado, consigo. Beijam-se tanto, tão prolongadamente contra o tempo. Contra tudo. Contra as ruas cheias de peões apressados e de olhares cerceadores. «Je ne t'aime plus, mon amour, je ne t'aime plus, tout les jours»; «Mon amour, quels yeux tes yeux»... e que corpo, que pescoço, a divina proporcionalidade.
Naquele jantar em que se conheceram, estava tão sozinho quanto o está agora. Não esperava nada, nem mesmo quando ele o incomodou com os seus olhos penetrantes, daqueles que vão directos à alma. O desenlace da noite foi a surpresa absoluta. Conversaram depois de muitos beijos e prolongadas mãos, deslizando por todo o corpo. Uniu-os aquele desejo urgente que, mais tarde, se desvaneceu em lágrimas. Então, descansou e permitiu que as nuvens se adensassem nos seus olhos, cercando-lhe a cabeça e atormentando as mãos trémulas.
Ensinaram-lhe que a vida tinha de ser feita com uma mulher. Desde muito cedo, mas quis que a sua felicidade fosse construída com um homem e violar esta lei deu-lhe tamanha tesão que só sossegou quando o fez. Aconteceu sem esperar. Da mesma maneira, ele apareceu sem pedir. Com ou sem coincidências, cruzaram-se. Viveu graças a isso e explodiu de alegria. Mas, propenso à precipitação, aproveitou o momento para se lançar contra ele. Nele. Provavelmente, de uma forma exagerada e, portanto, trágica e desnecessária.
Atraiu-lhe tudo. Magnetismo natural. Repousou naqueles lábios ardentes, na grandeza das suas mãos e do seu corpo. O seu nome bíblico embalou-o. Ficou nele até que as nuvens se adensaram nos olhos, cercaram completamente a cabeça e atormentaram as mãos trémulas. Aconteceu tudo como um relâmpago, estrondoso e veloz, destruidor. Os sentimentos incontroláveis e a sensação de perda são angustiantes demais para passarem com um copo de água ou com uma sesta. Demorou umas boas semanas a sarar a ferida da sinceridade.
Antes do seu aparecimento tinham passado por si alguns homens, de relações instáveis, com fins impetuosos ou sem importância. O seu aparecimento fora uma bênção. Percebeu que antecipou demais, que colocou o carro à frente dos bois. Já estava habituado à rotina das relações que não funcionam. O problema foi que, com ele, as suas emoções tinham depositado demasiadas expectativas. É difícil aceitar o «pronto, acabou, muito bem, a vida continua».
Fuma mais um cigarro, olha o tecto enrugado. Deseja o fim. Tragam-lhe a noite sem estrelas. Tragam-lhe o vinho que embebeda até ao vómito. Desventrem-no. Aniquilem-no.

3 comentários:

  1. Lindíssimo: profunda tragédia da paixão homo_erótica!

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  2. Muito curioso este texto, enquadrado no seu "timing" é claro; mas a vida é isto e as recordações são sempre importantes, mesmo que vivendo na actualidade um profundo amor.
    A prosa, não mudou nada, já estava aqui o teu "eu" a explodir em cada palavra...
    Abraço.

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  3. Escreves lindamente.Mas quero ler isto ainda com mais atenção. Abraço

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