Há textos que por um ou outro motivo nos marcam. Não sou o único a chamar-lhes fundadores, aqui, no entanto, não fundam uma estética, mas a personalidade. Como espaço de partilha que é um blogue, e princípio máximo da minha «missão», continuarei a partilhar aqui mais alguns desses textos. Tal é o caso do de hoje; reencontrei-o nas arrumações do verão e repesco-o: já tem oito anos, saiu numa revista um tanto ou quanto obscura - Plástica (só conheci o primeiro número) e desconheço se foi publicado noutro local. Marcou-me, como antes me marcou a «Lição sobre a Água» de Gedeão, pelo cruzamento entre ciência e metáfora, com uma forte incidência do que é ser-se ser humano, na senda ingente de auto-conhecimento e do lugar que ocupamos no mundo, vincando como não somos apenas corpo, nem apenas espírito. Somos uma unidade viva que equilibra esses pólos que séculos e séculos de racionalismo judaico-cristão fizerem questão em separar, cujos fundamentos radicam directa ou indirectamente na subalternização do mundo sensível e concreto postulados por Platão, valorizando o que a nossa linguagem designou como espírito. A verdade é que, antes de seja o que for, somos corpo, existimos porque as nossas células «trabalham de uníssono» (as questões do corpo ficarão para outra oportunidade).
HUMANOS
– «Porque é que o amas, quando todo o mundo o odeia?»
– «Porque ele me ama mais do que todo o mundo.»
– «Porque ele me ama mais do que todo o mundo.»
Eduardo II, Derek Jarman, 1992
Quarenta a setenta milhões de biliões de células (das quais 100 milhões são substituídas em cada momento) trabalham de uníssono, mantendo cada uma em cada segundo milhares de reacções químicas. Os seus núcleos organizam e comandam. Herdados dos progenitores, os seus 50.000 genes (em 23 pares de cromossomas) codificam a estrutura e a função de mais de 800 tipos de tecidos, formando os humanos.
Estes seres complexos relacionando-se entre si através de um notável computador, o sistema nervoso, com cerca de 100 biliões de neurónios, pequenas unidades, cada uma relacionada com 20.000 outras, num total de 2 milhões de biliões de ligações que descodificam, processam e memorizam as informações.
Como muitos outros seres, para além, deste sistema nervoso, os humanos têm um sistema digestivo limitado por uma boca e um ânus, através do qual passa em média mais de 1 kg de nutrientes por dia, que são degradados e distribuídos por todas as células do organismo, e um sistema excretor com rins igualmente complexos, como estação de depuração com cerca de 300 m2 para filtrar as impurezas do plasma. Outro importante filtro é o que se encontra nos 550 milhões de alvéolos envoltos em capilares, onde se processam as trocas gasosas entre o sangue e o ar envolvente, entrando o oxigénio tão essencial para a elaboração de energia e síntese das moléculas vitais.
Por fim, cerca de 4,5 metros quadrados de pele envolvem os 450 pares de músculos motores ligados através de uma estrutura óssea que lhe confere a necessária solidez para o movimento.
Estes são os humanos, cerca de 6 biliões bastante mal distribuídos pelo planeta Terra, capazes de se reproduzirem por via sexual, fabricando células com metade do número de cromossomas para que, através da fecundação, se reconstitua um novo lote duplo, num novo ser.
Então, perdida numa floresta hostil, a criança, projecto de futuro humano adulto, sai indefesa para um mundo frio. Vive o calor da relação com a mãe, e mais tarde a sua aproximação ao outro.
Mas, como viver na tensão entre o ilimitado das possibilidades deste ser, confrontando-se a todo o momento com a realidade do que é verdadeiramente alcançável? O humano vive assim a angústia de se sentir enjaulado em si próprio, escravo das suas acções, deprimido para se lembrar a cada instante que continua humano, enraizado no labirinto dos seus significados e tentando a todo o custo ligar-se a objectos ou rituais externos na perspectiva de conquistar a liberdade. Assim encontra o amor, forma de relacionamento para a vida que renasce sem cessar.
Curiosamente os humanos mantêm na sua fase de sexualidade activa, a capacidade da atracção e do desejo sexual em permanência, o que não acontece com outros animais, mesmo mais próximos na árvore da evolução. Mas, a essa capacidade juntou-lhe as novas faculdades do seu neocórtex cerebral: a realização de operações abstractas, de categorização, de utilização de palavra, tornou-se capaz de exprimir as suas emoções e de sentir as dos outros. A sexualidade deixou de ser apenas condicionada por hormonas e pulsões, passando a ser constituída à medida dos prazeres e sofrimentos vividos desde a infância.
O humano deprime-se, envolve-se em dependências, mas consegue suplantar o seu destino pelos dados computarizados do seu imaginário, tornando-se senhor dos seus desejos, e aproximando-se, dando-se verdadeiramente aos outros pelas representações que elabora no fascínio magnético de todos os seres amados, na descoberta pessoal da verdade contaminante do outro.
[sublinhados meus]
Estes seres complexos relacionando-se entre si através de um notável computador, o sistema nervoso, com cerca de 100 biliões de neurónios, pequenas unidades, cada uma relacionada com 20.000 outras, num total de 2 milhões de biliões de ligações que descodificam, processam e memorizam as informações.
Como muitos outros seres, para além, deste sistema nervoso, os humanos têm um sistema digestivo limitado por uma boca e um ânus, através do qual passa em média mais de 1 kg de nutrientes por dia, que são degradados e distribuídos por todas as células do organismo, e um sistema excretor com rins igualmente complexos, como estação de depuração com cerca de 300 m2 para filtrar as impurezas do plasma. Outro importante filtro é o que se encontra nos 550 milhões de alvéolos envoltos em capilares, onde se processam as trocas gasosas entre o sangue e o ar envolvente, entrando o oxigénio tão essencial para a elaboração de energia e síntese das moléculas vitais.
Por fim, cerca de 4,5 metros quadrados de pele envolvem os 450 pares de músculos motores ligados através de uma estrutura óssea que lhe confere a necessária solidez para o movimento.
Estes são os humanos, cerca de 6 biliões bastante mal distribuídos pelo planeta Terra, capazes de se reproduzirem por via sexual, fabricando células com metade do número de cromossomas para que, através da fecundação, se reconstitua um novo lote duplo, num novo ser.
Então, perdida numa floresta hostil, a criança, projecto de futuro humano adulto, sai indefesa para um mundo frio. Vive o calor da relação com a mãe, e mais tarde a sua aproximação ao outro.
Mas, como viver na tensão entre o ilimitado das possibilidades deste ser, confrontando-se a todo o momento com a realidade do que é verdadeiramente alcançável? O humano vive assim a angústia de se sentir enjaulado em si próprio, escravo das suas acções, deprimido para se lembrar a cada instante que continua humano, enraizado no labirinto dos seus significados e tentando a todo o custo ligar-se a objectos ou rituais externos na perspectiva de conquistar a liberdade. Assim encontra o amor, forma de relacionamento para a vida que renasce sem cessar.
Curiosamente os humanos mantêm na sua fase de sexualidade activa, a capacidade da atracção e do desejo sexual em permanência, o que não acontece com outros animais, mesmo mais próximos na árvore da evolução. Mas, a essa capacidade juntou-lhe as novas faculdades do seu neocórtex cerebral: a realização de operações abstractas, de categorização, de utilização de palavra, tornou-se capaz de exprimir as suas emoções e de sentir as dos outros. A sexualidade deixou de ser apenas condicionada por hormonas e pulsões, passando a ser constituída à medida dos prazeres e sofrimentos vividos desde a infância.
O humano deprime-se, envolve-se em dependências, mas consegue suplantar o seu destino pelos dados computarizados do seu imaginário, tornando-se senhor dos seus desejos, e aproximando-se, dando-se verdadeiramente aos outros pelas representações que elabora no fascínio magnético de todos os seres amados, na descoberta pessoal da verdade contaminante do outro.
[sublinhados meus]
António Pais Lacerda »» "Humanos (The humans)", Plástica »» direcção de Paulo Valente Pereira »» Lisboa »» Plesmedia »» n.º 1, Dez. – Jan., 1999-2000.
O texto é excelente e na primeira parte do mesmo, aprendi algumas curiosidades que desconhecia; os teus sublinhados mostram completamente toda a parte mais marcante do texto.
ResponderEliminarAbraço.
Fiquei siderado...
ResponderEliminarÉ espectacular nos dados, no raciocínio e nas deduções. Vai para o meu “baú”.
Obrigado pela partilha.
Abraço!
Extraordinário ler isto.
ResponderEliminarObrigado.
╡ meninos, ainda bem que gostaram. o texto tem duas vertentes muito distintas: uma biológica e quantificadora e outra, diria, absolutamente humana e realmente distintiva que nos torna únicos. como disse, e repito, este texto foi importantíssimo para um determinado rumo que decidi seguir; por enquanto está interrompido, mas nunca se sabe. um dia talvez lhe regresse.
ResponderEliminarabraços
Se é sobre a Tua Vida (humana), acredito que deves regressar. A todos os processamentos químicos, físicos, nesta escala astronómica que nos permite pôr aqui por códigos binários pré-programados, o que todo o nosso córtex frontal articulou entre si, o olho e a mão. Todos eles caminhos para tornar Seu o externo a Si.
ResponderEliminarAbraços, Paulo - e ao Zé!