quinta-feira, 20 de junho de 2013

THE BOOK OF DISTANCE [exegese]

A provar a sua falta de qualidade, o conto que apresento no The book of distance merece algumas explicações:

- a base da história assenta no realismo mágico (quem desconhecer o que é pode ler a wikipédia que é suficiente);
- o narrador não participa, limitando-se a contar a estória, "interagindo" com um dos pólos do casal que morrera anos antes, subitamente (o próprio narrador também estará morto?);
- há citações mais ou menos óbvias de Herberto Helder, Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, Rita Lee, Clarice Lispector, Mia Couto (e não me lembro se de mais alguém), mastigados em prosa poética, intrincada e subjetiva;
- pode não parecer, mas a mensagem final é muito positiva devido à união das duas almas, quebrando-se assim a distância;
- a distância em causa é a separação física que pode haver entre um vivo e um morto.

THE BOOK OF DISTANCE [letra C]

Cisão
ou
Corpos à distância
ou
Centelha de amor puro
ou
Chuva com porquê
ou
Cedo demais para tanta distância

Apoiou-se no encosto e sentou o corpo no banco a ver o mundo acontecer. Reconhecia que ver pessoas o comovia. Pessoas, sozinhas ou acompanhadas, apressando-se em passos rápidos, sem vagar para pormenores; eram poucas as que se demoravam. Jorge pensou, então, que havia de regressar a casa e sentir o cheiro da almofada. O cheiro que já lá não está. Lembrou-se desse cheiro e de como no princípio, quando te conheceu, costumava ficar chateado logo ao pressenti-lo. Habituar-se-ia. Ao ponto de sentir demasiado a sua falta.
Voltando ao banco do jardim: as pessoas nem reparavam que estava ali; era mais um velho transparente: um daqueles até sem nome ou apelido, com 73 anos ou sem idade nenhuma, solitário, sozinho, viúvo qualquer. Um Jorge qualquer, num jardim de uma cidade qualquer. Afinal: quem eram aquelas pessoas?, que saberiam de si? Avançava firme na sua vocação: continuar rumo à vasta noite, sem o saber, mas também sem pestanejar, como quem tem a certeza de que qualquer instante é mau para tal noite chegar, aquela que não admite preparação, ou em que toda a preparação é mera retórica. Pensou que ainda não era a hora, que ainda não estava preparado, que ainda tinha contas a ajustar com a sua memória. A solidão trama qualquer incauto: excesso de vestígios da vossa ligação e ninguém a quem os passar. É isso! Não pode por ausência de a quem transmitir... Primeiro tem de preparar tudo. Basta! Levantou o seu corpo mole de quem já viveu bastante, nunca o suficiente, e sentiu tudo de todas as maneiras para ter na pele enrugada a subtileza da experiência.
Avançou com o sentido no cheiro da almofada, no sentido do futuro. Assim era: em casa, o silêncio, o cheiro neutro da ausência; ah, sim, que o vazio não tem cheiro. O sol da tarde enchia a cozinha toda, mas não o espaço que tradicionalmente se diz ser o do coração, pois todo ele era distância. Tanta presença. Sentou o corpo sobre o passado todo, à procura de ti. Sim, de ti, que te debruçaste na dobra da madrugada sobre o instante entre o vazio e a luz. Com e sem tempo. Rememorou: a seu tempo, ele e tu amaram abundantemente, virilmente, amaram tudo e saber isso bastava. Ou achas que não? Ah, claro: queremos sempre mais. Ou de outra forma.
Estava Jorge assim: nunca se esqueceu do teu cheiro. Do sabor do sexo. Tanto tempo gasto e tudo igual. Chegaste a dizer-lhe que distância nenhuma havia de vos separar. Não sabias nessa altura que há promessas que não se devem pronunciar sob pena de terem de ser cumpridas. E foi o que aconteceu. Além de perceberes isso, percebeste que a tua sobrevivência dependia da memória de Jorge. Enquanto se lembrasse, viverias. Memória fresca. Carne viva. Assim vives tu.
Tão longe daqui, aqui mesmo, agora, tocas-lhe na mão esquerda que toca a mesa que é tocada pelo sol. Jorge não te sente. Mudas de tática e, olhos frente a frente, dizes-lhe «Não tenhas medo». E, à distância possível, a de um exato pensamento, ele pensa «Não tenho medo! Não tenho medo! Não desisto agora!» Apesar de a tarde ser de sol, começou a ficar inverno, o nevoeiro a adensar-se e começou a chover sobre o seu rosto. E tanto! Uma terrível tempestade. Desconheces por quê. Ou entendes,  e achas-te impotente – o teu cheiro só lhe chega através do registo da memória, o que, convenhamos, não é exatamente a mesma coisa. Acho que sabes que ele também se sente assim: limitado. Aprisionado. Falta-lhe ver-te, sentir carne contra carne – temperatura, cor. A distância que é nenhuma é toda a distância imaginável. Não te vê, não te sente, mas pressente-te aqui e ali, nos espaços, nos objetos. Repito, o teu cheiro é só a lembrança de ti, vivo, quente; vestígios da tua presença vigorosa, do teu ritmo enérgico, antes da súbita partida. Ninguém merece ficar assim sozinho! Mesmo agora, tantos anos depois, continuas a percorrer cada recanto do seu corpo, és uma memória muito viva, muito autêntica do que é o amor puro.
A chuva não pára. Adensa-se, mas, num súbito de repente, desce o silêncio mais silencioso. Tu gelas de medo, primeiro, da carne fria do Jorge, depois, por entenderes – quantas vezes morremos por entender? Perceber o mundo é uma coisa muito séria, absorve-nos tanto, tolhe-nos os sentidos e a consciência.
Eis que chove sobre ti.


Parece que sim, que se esfumou a fronteira da distância, em que todo o reencontro é um choque frontal. Acabou-se: os corpos que eram à distância são agora formas de uma energia perfeita. Mais nada, já distância nenhuma entre vós. Pergunta que se impõe: que memórias vos manterão vivos?
Eis que parou de chover também no teu rosto.



Lisboa | xxiv.iiii.mmxiii

quarta-feira, 19 de junho de 2013

THE BOOK OF DISTANCE [letra C] epígrafe # 3

Dom Duarte, Leal conselheiro - capítulo XXV (‘Do nojo, pesar, desprazer, avorrecimento e duidade’)
E a suidade nom descende de cada ũa destas partes mes é ũu sentido do coraçom, que vem da sensualidade, e nom da razom, e faz sentir aas vezes os sentidos da tristeza e do nojo. E outros veem daquelas cousas que a homem praz que sejam, e algũus com tal lembrança, que traz prazer e nom pena. E em casos certos se mestura com tam grande nojo, que faz ficar em tristeza. E pera entender esto, nem compre leer outros livros, ca poucos acharóm que delo falem, mes cada ũu veendo o que screvo, consiire seu coraçom no que ja per feitos desvairados tem sentido, e poderá veer e julgar se falo certo.

E a saudade não deriva de cada uma destas partes mas é um sentido do coração que vem da sensibilidade e não da razão e faz sentir às vezes os sentidos da tristeza e do desgosto. E outras vezes vem daquelas coisas que agradam ao homem, e algumas com tal lembrança, que traz prazer e não pena. E em certos casos mistura-se com tão grande pesar que faz ficar em tristeza. E para entender isto, nem é preciso ler outros livros, porque poucos acharam o que falar sobre isso, mas cada um vendo o que escrevo, considere o seu coração no que já tem sentido, e poderá ver e julgar que tenho razão. ["atualização" - paráfrase e ortografia - da minha responsabilidade]

THE BOOK OF DISTANCE [letra C] epígrafe # 2

Rita Lee, “Longe daqui, aqui mesmo”
Longe daqui, aqui mesmo
Tão longe daqui, aqui mesmo

No sinal vermelho
No topo da montanha
O delírio de estar vivo e simplesmente ser
Deixar-se levar pela correnteza
Na incerteza de avistar um farol

Longe daqui, aqui mesmo
Tão longe daqui, aqui mesmo

Desmaia a noite
Acorda o sol
Secam lágrimas de medo
Revela-se o segredo do escuro
O muro era apenas uma ponte
Entre a sede e a fonte
A morte não é mais do que mais um a menos...

Longe daqui, aqui mesmo
Tão longe daqui, aqui mesmo


(o vídeo é que... pronto)

THE BOOK OF DISTANCE [letra C] epígrafe # 1

John Steinbeck, A um Deus desconhecido
“(…) a vida não pode ser cortada repentinamente. Uma pessoa não pode estar morta enquanto as coisas que alterou não tiverem morrido. Os efeitos que provocou constituem a única prova de que esteve viva. Enquanto se conservar uma recordação, ainda que dolorosa, uma pessoa não pode ser posta de parte, morta.”

THE BOOK OF DISTANCE [fotos]



THE BOOK OF DISTANCE [intro]

 Distância

Há vários meses, fui instado pelo João a escrever um texto (ele falou do assunto aqui). E, meio inconscientemente, aceitei. Na altura, nem ele nem eu imaginávamos que eu demoraria tanto tempo a concretizar o “desafio”.
Achei muito interessante por vários motivos: por não conhecer quase nenhum dos participantes que já tinham sido escolhidos nem mesmo o promotor da iniciativa (Sad Eyes); por ter de escrever sobre distância e os temas disfóricos atraem-me mais; por não fazer ideia do que haveria de fazer. Melhor: só sabia que tinha de escrever um texto, sob o signo da letra C, a sétima estória (cada estória toma uma letra de distância | participantes anteriores de D a N).
O João enviou-me o Moleskine (as fotos na entrada seguinte serão dele), vi, li, avancei, fui criando o texto a ponto de se tornar um nó… Às tantas, o tempo foi passando, passando. O nó crescia. De repente, chegados ao jantar de blogues, resolvi dar-lhe uma conclusão. Tinha o texto redigido, finalizado e, já depois, finalmente, passei-o à mão, com letra minúscula.
Gostei da experiência, gostei de descobri caligrafias tão diferentes e de encontrar uma, em certos aspetos, muito semelhante à minha (a ponto de ter achado que algo tinha sido redigido por mim).
Entretanto, passei o testemunho à Marita (blogue Rumor das Nuvens) que fica encarregue de escrever em I.



distância



distância

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