Confesso: nunca li as
Canções de fio a pavio. Aliás, confesso ainda que nunca me tinha debruçado muito sobre o fenómeno
António Botto. A verdade é que, com esta edição das suas obras completas, sob a chancela da Quasi, fiquei tentado a lê-lo melhor e mais (tinha cá em casa uma edição das
Canções da Presença a que nunca regressei muito e da qual só me lembrava de alguns poemas isolados).
Eduardo Pitta dirige a colecção em nove volumes e chamou a este primeiro
Canções e Outros Poemas, reajustou o título ao teor do volume, escolha que está muito bem explicada na nota editorial e na introdução (amei o título “Uma cegueira inconsciente”!), o que nem sempre acontece quando se editam os mortos (mesmo pelos académicos).
Além da introdução, o livro inclui uma cronologia, na qual é sobejamente explicitada a importância que Pessoa teve na recepção e defesa da obra de Botto. Nestas duas intervenções (introdução e cronologia), Eduardo Pitta faz uma excelente digressão crítica (inclui um Ricardo Araújo Pereira pré-comediante) que me deixou surpreendido, inclusive pelo modo como Eugénio de Andrade pôde ter sido tão mauzinho com o autor das
Canções e manifestar uma tão curta memória (Botto incentivou a publicação do primeiro livro do ainda José Fontinhas). Afinal, Botto manifestou uma ousadia que
Abel Botelho não teve (cf. p. 35); esbarrei, novamente, com a obliteração da homotextualidade por parte da
intelligentzia (cf. 27). Surpreendi-me também com a crise de fé que Botto teve nos anos 50 (produziu efeitos em
Fátima, o segundo volume da colecção e que ainda não adquiri) e com a morte e o posterior esquecimento fundamentado nas reticências de ordem moral.
Mais uma vez, Eduardo Pitta apresenta um excelente trabalho e dá um retrato muito útil e elucidativo da vida, mas, sobretudo, da recepção que a obra de Botto teve, da importância que lhe foi negada em grande parte por tematizar justamente a homossexualidade. Neste momento, parece-me ser impossível continuar a ignorá-lo como um autor essencial na história da nossa homotextualidade, mas sabemos bem como a academia funciona (não me esqueço das palavras d
'A Professora quando referiu que há apenas alguns anos era impensável trabalhar um autor vivo e determinados temas!). Mais: desconheço reacções significativas à saída do livro (nem a
Com'Out o sugere).
Ainda bem que foi Eduardo Pitta o escolhido e aceitou o desafio para editar Botto e, como é seu apanágio, ter posto o dedo na ferida, chamando os bois pelos nomes! Numa época que continua a viver muito de aparências, salamaleques e gente
enrustida, acho, pois, que todos devemos muito ao Eduardo por isso:
«
Sem elidir o género, Botto fez, como ninguém em Portugal antes dele, o desembaraçado relato do amor que não diz o seu nome: «Quem é que abraça o meu corpo / Na penumbra do meu leito? […] – És tu, senhor dos meus olhos, / E sempre no meu sentido.» Um tal virtuosismo rítmico isenta a confessionalidade dos versos de qualquer tipo de proselitismo. Vinham longe os tempos dos gender studies, mas Botto antecipava de forma estridente a evidência da experiência…» (p. 35)
*****
1
Não. Beijemo-nos, apenas,
Nesta agonia da tarde.
Guarda –
Para outro momento,
Teu viril corpo trigueiro.
O meu desejo não arde
E a convivência contigo
Modificou-me – sou outro…
A névoa da noite cai.
Já mal distingo a cor fulva
Dosa teus cabelos. – És lindo!
A morte,
Devia ser
Uma vaga fantasia!
Dá-me o teu braço: – não ponhas
Esse desmaio na voz.
Sim, beijemo-nos apenas!,
– Que mais precisamos nós? («Adolescente», p. 45)
*****
1
O mais importante na vida
É ser-se criador – criar beleza.
Para isso,
É necessário pressenti-la
Aonde os nossos olhos não a virem.
Eu creio que sonhar o impossível
É como que ouvir uma voz de alguma coisa
Que pede existência e que nos chama de longe.
Sim, o mais importante na vida
É ser-se criador.
E para o impossível
Só devemos caminhar de olhos fechados
Como a fé e como o amor. («Curiosidades Estéticas», p. 73)
António Botto »» Canções e Outros Poemas »» edição, cronologia e introdução de Eduardo Pitta »» revisão de Luís Manuel Gaspar »» Vila Nova de Famalicão »» Quasi »» Maio de 2008© Nazif Topçuoğlu, Cain and Abel (da série Recent Readers), 2003