segunda-feira, 15 de outubro de 2007

..:: para derreter o gelo ::..

Há precisamente dez anos escrevi este texto sobre a descoberta, trata-se de uma espécie de manifesto com pontos nos quais já não me revejo ou que compreendo de uma forma completamente distinta, mas segue como estava, sem mudar uma vírgula. Devia ter saído numa publicação organizada pela ILGA Portugal, na altura ainda dirigida pelo seu fundador, Gonçalo Diniz. O projecto fracassou e com ele morreram os meus sonhos activistas.


Para quebrar o gelo

O mundo caiu-me aos pés quando reconheci a minha homossexualidade. Era, então, a pior coisa que me podia acontecer. Todavia, depressa aprendi a amar seres, simultaneamente, iguais e diferentes. Assumir a sexualidade, positivamente, é crucial para avançarmos no nosso conhecimento. Mas não deixa de ser complicado: intrometem-se imagens sociais, preconceitos, punições... E pior que essa censura cultural é a autocensura que nos impede de agir e gritar somos diferentes! Ela é, talvez, o maior impedimento para a nossa evolução individual e colectiva. Temos receio de chocar, preferindo o silêncio. Mas o silêncio acarreta complexos, desenquadramentos, problemas emocionais.
Desengane-se quem pense que a homossexualidade é uma opção (lugar comum tão errado quanto generalizado); se o fosse, optaríamos por ser heterossexuais e teríamos os problemas resolvidos. Mas não é uma opção de vida, tal como não é uma moda, uma fase de transição, um gene ou um complexo mal resolvido. Existe uma certa tendência natural para justificar a nossa sexualidade que é, no fundo, a nossa existência. Porquê justificar uma coisa que naturalmente somos? Porquê legitimar os nossos sentimentos como se não fossem legítimos? Nunca nenhum hetero teve de justificar a sua sexualidade, nem de lutar para alcançar os direitos que, afinal, sempre tiveram.
É importante viver a (homos) sexualidade sem culpa ou medo que o mundo nos caia, uma vez mais, em cima. Aqui não há inocentes nem culpados, porque não estamos sós e é fundamental a união para fazermos ouvir a nossa voz! Chega de querer calar e esconder que somos iguais aos heteros, desde os direitos até ao que a sexualidade implica. A nossa sexualidade é uma diferença tão essencial que não a podemos esconder. Temos uma história diferente e outras estórias, outros heróis, outros modelos, paradigmas e estereótipos, outros espaços, outros ideais, outras necessidades, outras estéticas... E somos obrigados a viver pelas leis desse mundo que nos abafa! Resta-nos a noite solitária, ausente em luz e formas que aprendemos a reconhecer. Nessa imensidade tenebrosa, a lua, despe-nos, tornando-nos semelhantes na nossa nudez. Porquê usar máscaras se todos os adereços se tornam transparentes? Temos vergonha de sermos nós próprios?
Tornámo-nos cidadãos nocturnos, com outras normas: o dia é a nossa noite e a noite é o nosso dia. Vivemos na noite o que não nos permitem viver de dia, sob a apetitosa e doce tirania do sexo! Tirania que nos dá prazer e, em vez de nos limitar, nos empurra para a busca de novas experiências, na aventura do insólito e do proibido, mas também, da copiosidade dionisíaca, da volúpia, do culto não-censurado da carne.
Navegamos nas ondas da noite, sentindo o prazer que colhemos com o corpo. O homem vive de sensações. O contrário, tentar anular, reprimir o prazer, isso sim, seria contra natura, contra a nossa natureza de homens ávidos de experiências sensitivas na busca de prazer, absoluto e felicidade. Sem prazer seríamos máquinas de reprodução em série (linha de montagem). Não amamos para nos reproduzirmos, instintivamente, mas para nos completarmos.
A sensibilidade impulsiona-nos na apreensão do outro, sentindo-o intensamente. Precisamos dele para nos completarmos perante a constatação da nossa solidão, finitude e, sobretudo, imperfeição. Procuramos, desesperadamente, a perfeição como se ela se encontrasse nalgum corpo. Nesse corpo incerto, que é preciso procurar na fauna da floresta nocturna urbana, de enganos, sombras e equívocos. Talvez aí encontremos o absoluto. É o centro da perfeição, secreto e mágico que esconde a felicidade e o prazer. Amar é descobrirmo-nos no amado, projectados nele como extensões de nós próprios. Somos cúmplices, explorando fontes de prazer. Sentir o outro é, pois, conhecer o que ele tem de mais autêntico e profundo. Não importa como ele é, desde que seja a parte que nos falta.
Tudo o que desejarmos fazer limitar-se-á à privacidade do lar para não ferir susceptibilidades. Só aí podemos ser nós. O que inquieta as pessoas, como disse M. Foucault, não é um acto sexual que fuja às normas mas, sim, que existam pessoas do mesmo sexo que se amem. Não podemos manifestar o nosso afecto em público. Proíbem-nos a ternura, o afecto, o carinho, os gestos meigos para não perturbarmos uma moral supostamente correcta... Negam-nos a vida e nós que fazemos?
Tamanha hipocrisia! O nosso silêncio toma-se ridículo. As revoluções surgem porque há ideias putrefactas que precisam ser enterradas, substituídas. Fazem-se e não são pacíficas. Pergunto: qual foi o nosso crime? Qual é a nossa culpa? Não venham com tretas, pedindo que abafemos ou sacrifiquemos a nossa sexualidade, tentando tratar-nos ou, cúmulo dos cúmulos, converter-nos. É urgente confrontar esses cânones anacrónicos. Lembremos que os nossos padrões não encaixam nos seus. Não podemos recear nada, pois nada é mais humilhante que a indiferença e a não-existência a que nos têm votado. São eles que têm de se adaptar à ideia, e não nós às suas leis.
Tentamos ver o mundo com olhos de seres humanos e somos tratados como animais. É preciso enfrentar a maré, ultrapassar para criar. Nós existimos e amamos! Porque não havemos de ser indivíduos privilegiados? Onde está o nosso orgulho? É bom ser gay. Mas, fique claro, que é sempre bom, e não só quando nos deixam ser! Há que aceitar o que somos sem medo de mostrarmos, de rosto destapado, a nossa sexualidade, as diferenças, tendo em conta as semelhanças (porque somos humanos – para aqueles que às vezes se esquecem disso), dentro de uma biodiversidade saudável.

10 comentários:

  1. Paulo, não sei quais os pontos nos quais já não te revês, mas o texto está muito bom. Há algum tempo que queria postar sobre a homossexualidade no meu blogue e creio que este teu texto seria o ideal para avançar com essa minha vontade. Importaste-te que te cite?
    Um beijinho,
    D

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  2. Denise, usa o que quiseres, à vontade, desde que cites :)

    Então eu explico onde divirjo: essencialmente, é na ênfase que pus na diferença relativamente aos heteros, no destaque à noite e no tom de manifesto.
    Abraços

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  3. Belo texto, paulo! era bom que viesse aqui muita gente ler isto.

    bjs, inês.

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  4. Obrigado, Inês. O texto está um pouco anacrónico. De qualquer modo, ler custa e cansa a vista :))
    Um abraço!

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  5. Amigo Paulo
    o meu destaque vai para o timing em que escreveste este texto, pois dizes que foi no tempo em que o Gonçalo Diniz, esteve à frente da ILGA, e curiosamente, foi o tempo em que eu estive ligado à ILGA também, chegando a pegar num grupo para iniciar o Centro de Documentação. Será que nos encontrámos por lá?
    Abraço.

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  6. Olha, Pinguim, é bem possível que nos tenhamos encontrado alguma vez. Confesso que não me lembro, até porque o grupo da publicação era grande e desse tempo só me lembro da Anabela, da Sissi e da Marita. Lembras-te delas? Conhece-las?
    Abraços.

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  7. É interessante, o texto ter sido escrito nessa altura. Abraços (Então, agora é a vossa vez de sair daqui? Que bom. Quero ir outra vez!)

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  8. Olá Dário, desfeito o equívoco, acho que se percebe que o texto está datado, pelo menos para mim, agarrado àquela fase da minha até então curta existência. Como o tempo passa!...
    Um abraço com desejo de sair, fugir, ir embora, mas sem hipóteses de o fazer agora :(

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  9. Da Anabela, perfeitamente, cheguei a jantar em casa dela e ela veio aqui a um aniversário meu.

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  10. Pinguim, ainda temos de combinar um café para falarmos desses tempos. Abraços

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