As coisas que uma pessoa descobre. Sabias, com certeza, de onde vem a pomba com o ramo de oliveira como símbolo da paz? Ora bem, tarde, mas descobri que a história do dilúvio não é exclusivamente bíblica, pois vem já relatada na epopeia de Gilgamesh, pela voz de Utnapishtim (com paralelo bíblico em Noé).
“Gilgamesh é a história de um rei sumério da cidade-estado de Uruk que teria vivido no século XXVIII a.C.. Seu registo mais completo provém de uma tábua de argila escrita em língua Acádia do século VII a.C. pertencente ao rei Assurbanipal, tendo sido no entanto encontradas tábuas com excertos que datam do século XX a.C., sendo assim o mais antigo texto literário conhecido” (cf. wikipédia). Leste bem? Século XX a.C.!
Também não é vão que Pitta lhe chama “epítome do amor viril” (in Fractura: A Condição Homossexual na Literatura Portuguesa Contemporânea. Coimbra: Angelus Novus. 2003, p. 8). Com efeito, a epopeia relata como Gilgamesh se aproximou de Enkidu, ser criado pelos deuses a partir do barro. Palavras de Luís Alves da Costa no prefácio: «Esta é uma antiga história de amor. A de um Rei de Uruk a quem os deuses quiseram perder, um Rei dominado pelos sentidos e pela violência dos prazeres. E da prece dos homens à divina Aruru, A-Da-Criação, que dele os livrasse, irá nascer Enkidu, o igual de Gilgamesh, e à sua imagem, «semelhante a ele como o seu próprio reflexo», Enkidu para que o combatesse.
Mas esta é uma antiga história de amor. Nela seria excessivo que Gilgamesh combatesse e se não apaixonasse pelo seu duplo, o bravio Enkidu; pelo que, quando os helenos veneraram o Mito de Narciso, já esta história de milénios se ria havia há muito às gargalhadas, mostrando que o coração dos homens é uma força civilizadora muito mais forte que a vontade dos deuses.»
Também não é vão que Pitta lhe chama “epítome do amor viril” (in Fractura: A Condição Homossexual na Literatura Portuguesa Contemporânea. Coimbra: Angelus Novus. 2003, p. 8). Com efeito, a epopeia relata como Gilgamesh se aproximou de Enkidu, ser criado pelos deuses a partir do barro. Palavras de Luís Alves da Costa no prefácio: «Esta é uma antiga história de amor. A de um Rei de Uruk a quem os deuses quiseram perder, um Rei dominado pelos sentidos e pela violência dos prazeres. E da prece dos homens à divina Aruru, A-Da-Criação, que dele os livrasse, irá nascer Enkidu, o igual de Gilgamesh, e à sua imagem, «semelhante a ele como o seu próprio reflexo», Enkidu para que o combatesse.
Mas esta é uma antiga história de amor. Nela seria excessivo que Gilgamesh combatesse e se não apaixonasse pelo seu duplo, o bravio Enkidu; pelo que, quando os helenos veneraram o Mito de Narciso, já esta história de milénios se ria havia há muito às gargalhadas, mostrando que o coração dos homens é uma força civilizadora muito mais forte que a vontade dos deuses.»
© Angelo Bozac, Gilgamesh
Obviamente que recomendo a leitura, mais não seja como forma de regressar ao mundo mágico, onde humanos e deuses convivem no seio de uma mitologia exótica mas muito interessante. Além disso, destaca-se a relação de Gilgamesh com Enkidu e a procura da imortalidade. Não é uma história gay (não te esqueças: os registos mais antigos são do século XX antes de Cristo, 'tá!), mas está lá o essencial. Ficam aqui algumas passagens (o livro é pequenino e lê-se num ápice - na altura e em escrita cuneiforme não havia tempo para grandes delongas ☻):
«Quando os deuses criaram Gilgamesh, deram-lhe um corpo perfeito. Shamash, o glorioso Sol, dotou-o de beleza; Adad, o deus da tempestade, dotou-o de coragem; os grandes deuses fizeram perfeita a sua beleza, que ultrapassava todas as outras e que aterrava como um grande touro selvagem. Dois terços o fizeram deus e um terço, humano» (p. 11).
«Mergulhou a deusa as suas mãos na água, entre os dedos apertou argila e deixou-a cair no deserto: e o nobre Enkidu foi criado. Havia nele a virtude do deus da guerra, do próprio Ninurta. O seu corpo era rude e tinha longos cabelos como uma mulher, ondulados como os cabelos de Nisaba, a deusa do trigo. O seu corpo era coberto de pêlo emaranhado como o de Samuqan, o deus do gado» (p. 14).
«Durante todo o dia ele esteve deitado no seu leito, e o seu sofrimento aumentou. Disse a Gilgamesh, o amigo por causa do qual abandonara o deserto:
«Em tempos corri para ti, para a água da vida, e agora não tenho nada» (pp. 47-48).
«Em tempos corri para ti, para a água da vida, e agora não tenho nada» (pp. 47-48).
«Tocou no seu coração mas ele não batia, nem voltou a erguer os olhos. Quando Gilgamesh tocou no seu coração ele não batia. Por isso Gilgamesh estendeu um véu, como um véu de noiva, sobre o seu amigo. Começou a enfurecer-se como um leão, como uma leoa a quem roubaram as crias. De um lado para o outro andava à volta do leito, arrancou o seu cabelo e espalhou-o em redor. Tirou as suas vestes esplêndidas e atirou-as ao chão como se fossem abominações.
À primeira luz da madrugada Gilgamesh exclamou:
«Eu fiz-te descansar num leito real, reclinaste-te num divã à minha esquerda, os príncipes da terra beijaram os teus pés. Farei com que todo o povo de Uruk chore por ti e entoe o canto dos mortos. O alegre povo curvar-se-á de tristeza, e quando te fores para a terra deixarei o meu cabelo crescer por amor de ti, irei vaguear pelo deserto coberto com a pele de um leão» (p. 50).
À primeira luz da madrugada Gilgamesh exclamou:
«Eu fiz-te descansar num leito real, reclinaste-te num divã à minha esquerda, os príncipes da terra beijaram os teus pés. Farei com que todo o povo de Uruk chore por ti e entoe o canto dos mortos. O alegre povo curvar-se-á de tristeza, e quando te fores para a terra deixarei o meu cabelo crescer por amor de ti, irei vaguear pelo deserto coberto com a pele de um leão» (p. 50).
«Por Enkidu; eu amava-o ternamente, juntos suportámos toda a espécie de provações; por sua causa vim, porque a sorte comum dos homens o tomou. Por ele chorei de dia e de noite, não queria abandonar o seu corpo para ser enterrado, pensei que o meu amigo voltaria graças ao meu pranto. Desde que se foi, a minha vida nada é (...)» (pp. 54-55).
«Como posso eu ficar silencioso, como posso descansar, quando Enkidu, que eu amei, se tomou pó, e também eu morrerei e me deitarei na terra? (…)» (p. 58).
Texto em inglês »»
Gravura e alto relevo do Palácio de Sargon II da capital Assíria Khorsabad (séc. VIII a.C.) (cf. esta outra representação no Louvre) | Pintura de © Luís Alves da Costa
Mais ilustrações das façanhas de Gilgamesh e Enkidu »»
Gilgamesh »» versão de Pedro Tamen do texto inglês de N. K. Sandars »» prefácio de Luís Alves da Costa »» 3.a edição »» Lisboa »» Vega »» 2005
Por acaso já tinha ouvido falar disto... ;)
ResponderEliminarO Judaísmo absorveu muitos elementos doutras civilizações, por isso é natural que a Bíblia reflicta tradições e conceitos oriundos doutros povos.
Por exemplo, para os judeus o mar é considerado o símbolo do mal. E porquê? Porque para um povo nómada que vivia no deserto, é natural que se sentisse intimidado com uma realidade desconhecida, que é o mar...
Enfim, isto dava pano para a manga! fico por aqui antes que comeces a bocejar de enfado... LOL
Muito interessante o conteúdo deste texto, principalmente para alguém como eu, que gosta de História; mas tenho que confessar que este assunto era virgem para mim.
ResponderEliminarObrigado pois pela cuidada partilha.
Abraços.
Nunca vi a epopeia de Gilgamesh sob este especto. Ó pá, tenho mesmo de comprar o livro. Ainda bem que fizeste este post.
ResponderEliminarMas lá está... a História começa na Suméria! ;)
Fantástico! Conseguiste despertar a curiosidade deste amante de História.
ResponderEliminarUm abraço
Eu conheço o livro! Tb gosto muito!
ResponderEliminarMonga
As coisas que tu descobres... tenho mesmo que ler(lol).
ResponderEliminarObrigada pelo comentário no meu blog. O meu irmão cortou-se numa mão,com alguma gravidade,ao tentar abir uma porta de vidro que estava presa ( coisa pouco aconselhavel...). Já passou por uma cirugia e em seguida virá a fisioterapia...mas acredito que vai ficar bem. Obrigada, mais uma vez e beijinhos for you and your man :)
Conceho a epopeia, mas gosto muito das ilustracoes que encontraste ..... Que eu saiba segundo a interpretacao mais comun o tema principal é a procura da imortalidade. Até tambem vi aparecer esta epopeia num livro que pretendia provar que nos somos descientes de alguns extraterrestres mais o menos immortais e o Gilgamesh era um dos ultimos representantes da especie que nao consiguiu conservar a seu immortalidade, já nao me lembro porque... Mas nunca tinha pensado que se pode tambem interpretar como historia de amor homosexual. Naturalmente, visto desta maneira a mitologia clássica oferece muitissimo mais :)
ResponderEliminardescobri o livro no meu primeiro de ano de faculdade e fiquei fascindado por muitas coisas que deram origem a um dois textos breves. mas aqui apresentaste os traços essenciais. muito bem!
ResponderEliminarPá, obrigado pela publicidade :-)
ResponderEliminarTêm mais imagens aqui, caso vos interessem:
http://luisalvesdacosta.wordpress.com/
Saudações artísticas