Depois da euforia, vamos lá ao que interessa e que já tinha prometido há uma semana: o etéreo:
autobiografia | sexualidade | mística
Autobiografia, sexualidade e mística são as temáticas (não estou certo se lhes poderei chamar assim) que mais me entusiasmam nos textos. Apesar de não interessar a muita gente, apetece-me aflorar a mística, porque gosto da poesia presente nesses textos que recorrem a um discurso forte, altamente metafórico, poético ainda que não lírico. E místico não tem nada que ver com esotérico, muito menos com Alexandra Solnado; místico é o desejo de união com o Absoluto (repito, não tem mesmo nada que ver com esta supra-referida Alexandra). Entre os místicos, lembrar-se-ão da medieval Hildegard von Bingen (beata católica e santa anglicana), de São João da Cruz ou de Sta Teresa de Ávila (cf. esta citação).
Gravuras e música de Hildegard von Bingen [1098-1179]
Discover Sequentia!
Grande parte da mística funda raízes no incrível Cântico dos Cânticos (que bem conhecem e de onde já citei aqui e aqui) e usa um discurso muito erótico (e sexual). Talvez por isso e pela simbólica, goste tanto dos místicos, seres privilegiados tão próximos de Deus. No Dicionário dos Símbolos, Chevalier e Gheerbrant registam na entrada “Sexo”:
«A sexualidade simboliza a procura de unidade, o apaziguamento da tensão, a realização plena do ser. Por isso os poemas místicos utilizam a linguagem erótica, para tentar exprimir a inefável união da alma com o seu Deus»
(p. 607)
(p. 607)
Esta ideia tem sido o meu ponto de partida para as leituras e estudos que tenho feio de textos desta índole.
Bernini, Beata Ludovica Albertoni e o Êxtase de Sta Teresa
Recentemente, iniciei a leitura de Livro do Amigo e do Amado do medieval beato catalão Ramon Llull (1232/33-1315/16) que se baseia no protocolo de leitura em que o Amado é Deus e o Amante, neste caso, o “fiel e devoto cristão”. É assim que devem ser lidos os seguintes excertos, e desculpem-me os puristas e os alienados das minhas tendências mundanas, mas não lhes consigo dissociar o sentido erótico. Em todo o caso, o carácter religioso/sagrado redime-lhe a ousadia. Apetece-me lembrar que se perdoa o mal que faz pelo bem que sabe. Além disso, todo o livro é um hino ao amor a Deus, que é, afinal, um amor humano, muito humano. Blanquerna, o autor ficcionado a quem Ramon Llull atribui a autoria do livro, redigiu tantas "metáforas morais" quantos os dias do ano. De entre elas, escolhi 15; leiam-nas bem e confessem lá que não se revêem em nenhuma:
1. Perguntou o amigo ao seu amado se havia nele alguma coisa por amar, e o amado respondeu que aquilo que poderia multiplicar o amor do amigo era amar. (p. 12)
2. Os caminhos pelos quais o amigo procura o seu amado são longos, perigosos, povoados de considerações, de suspiros e de choros, e iluminados de amor. (p. 12)
5. Disse o amigo ao amado: «Tu que enches o Sol de resplendor, enche o meu coração de amor.» Respondeu o amado: «Sem a plenitude do amor os teus olhos não estariam em pranto, e tu não terias vindo a este lugar para ver o teu amante.» (p. 12)
6. Experimentou o amado o seu amigo para ver se o amava perfeitamente; e perguntou-lhe que diferença havia entre a presença e a ausência do amado. Respondeu o amigo: «Como entre a ignorância e o esquecimento, o conhecimento e a recordação.» (pp. 12-13)
44. Pois são os fogos que aquecem o amor do amigo: o primeiro é feito de desejos, prazeres e cogitações; o outro é composto de temor, sofrimento, lágrimas e choros. (pp. 18-19)
53. Andava o amigo por uma cidade como louco, cantando o seu amado; e perguntaram-lhe as gentes se perdera o juízo. Respondeu que o seu amado lhe tirara a vontade, e que ele lhe dera o seu entendimento; por isso lhe tinha ficado tão somente a memória com que recordava o seu amado. (p. 20)
58. Andava o amigo desejando o seu amado e encontrou dois amigos que saudaram com amor e choros, e abraçaram-se e beijaram-se. O amigo desmaiou: tão fortemente lhe lembraram os dois amigos o seu amado. (p. 21)
59. Pensou o amigo na morte e teve medo até que se lembrou do seu amado. E gritou para a gente que estava à sua frente: «Ah, senhores! Amai, para que não temais a morte nem os perigos, honrando o meu amado.» (p. 21)
61. «Diz, louco: se te desamasse o teu amado, o que farias?» Respondeu e disse que amaria para que não morresse, porque o desamor seria a morte, e o amor é a vida. (p. 22)
69. Os caminhos do amor são longos e breves porque o amor é claro, puro, nítido, verdadeiro, subtil, simples, forte, diligente, resplandecente e abundante de novos pensamentos e antigas lembranças. (p. 23)
116. Encontraram-se o amigo e o amado e foram testemunhas do seu encontro, saudações, abraços, beijos, lágrimas e choros. E perguntou o amado ao amigo sobre o seu estado, e o amigo ficou embaraçado na presença do seu amado. (p. 32)
234. O amor é mar agitado de ondas e ventos que não tem porto nem costas. Perece o amigo no mar e no seu perigo perecem os seus tormentos e nascem as suas obras. (p. 53)
295. Chamava o amado o seu amigo e ele respondeu-lhe, dizendo: «Que desejas, amado, que és olhos dos meus olhos e pensamento dos meus pensamentos, e perfeição das minhas perfeições e amor dos meus amores, e ainda princípio dos meus princípios?» (p. 64)
341. Cogitou o amigo sobre a morte e teve pavor até que se lembrou da cidade do seu amado, da qual a morte e amor são portas e entradas. (p. 73)
357. Estava o amigo coberto de amor por dentro e por fora e andava à procura do seu amado. Dizia-lhe o amor: «Onde vais, amante?» Respondeu: «Vou para o meu amado para que tu sejas maior.» (p. 76)
Ramon Llull »» Livro do Amigo e do Amado »» tradução de Dimíter Ánguelov e revisão de Artur Guerra »» Cotovia »» 1990
já ganhei o dia.
ResponderEliminarobrigado
► Tulisses, ainda bem! Fico feliz por isso! Obrigado, nós!
ResponderEliminarEstou abismaravilhado com este post. :D
ResponderEliminarSou um apreciador da música medieval, por isso gostei muito da tua escolha.
Desconhecia esta obra. São brilhantes estes excertos. :-O
Estou sem palavras...
► Obrigado, Paracletus! Pode parecer estranho, mas adoro canto gregoriano (e é tão raro, encontrar algum que seja só feminino) e música medieval e música do mundo. Devo ser uma criatura estranha, porque também gosto de trance... enfim, ainda bem que gostaste, isso é que importa!
ResponderEliminarEntão eu também sou uma criatura estranha, pois tenho os mesmos gostos que tu... :S
ResponderEliminarA mística católica é uma paixão que me acompanha há muito, em especial a de São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila...
ResponderEliminarPor esta paixão já me meti sozinho no carro e segui os mesmos caminhos de Espanha que ambos seguiram nas suas fundações, visitando os lugares onde tiveram alguns dos seus arroubamentos: foi uma experiência fenomenal!
Os excertos desta obra (que desconhecia) abriram-me o apetite para novas leituras...
Um abraço,
Will
► Paracletus, definitivamente, somos criaturas estranhas e nada há a fazer. Isso é bom! Claro que gostamos de muitos outros estilos. E isso também é muito bom!
ResponderEliminarp.s.: porque é que o teu blog não é actualizado no reader? que fizeste tu aos códigos rss e atom, hein? assim, espero-me de lá passar no teu blog e nunca sei quando há novidades. Não está legal!
► Caro Will, imaginava que sim e não és o único a quem imputo esse gosto :))
ResponderEliminardos locais de que falas só fomos a Alba de Tormes, num dia de muito calor, mas ficámos impressionados. É uma daquelas mulheres impressionantes, grandes em tudo.
Quanto ao livro, vale a pena e lê-se num ápice, e, como se vê, completamente focado na relação entre o crente e Cristo.
abraço!
A H. von Bingen era muito interessante. Grande escolha para acompanhar o êxtase.
ResponderEliminar... e as "metáforas morais", claro.
ResponderEliminarGosto da simplicidade. E foi muito bom apreciar que optaram por essa nova abordagem... Volto em breve. Abcs,
ResponderEliminar► Paulinho, pareceu-me bem, já que estava entre místicos... quanto às metáforas, valem por isso, têm obviamente água para muitos mares, isto é, interpretações mais ou menos literais.
ResponderEliminar► Luís, ena, de regresso. Bem-vindo!
ResponderEliminarPorque é que nos teus posts me apetece dizer tanta coisa e depois não sei encaixar bem as palavras?
ResponderEliminarEste não foge à regra, mas devo confessar que não sou muito dado a misticismos (daí talvez considerar a Idade Média a época histórica que menos me seduz); mas neste post há coisas lindas: a música (embora não aprecie a I.Média, gosto muito da música da época); os trechos escolhidos que justificam totalmente o binómio culto/profano da obra onde estão inseridos; e das fotos - a última apetecia-me continuar a vê-la longos minutos...
Um belìssimo post, o primeiro do ano II...
Abrações.
► Querido Pinguim, provavelmente falta a inspiração porque não há muito a dizer! Vá, mas confesso: quando comecei a ler o livro estava o Déjan de partida e lembrei tanto, mas tanto de vós!... decidi que era melhor esperar um tempo, deixar o livro e as citações repousarem. Claro que nem todos nós temos de ser dados às mesmas coisas (sim, esqueci-me de referir no post das características que sou bastante espiritual, embora continue sem saber o que isso seja). Vá, regressa lá às citações e esquece esse binómio! Até eu me achei nelas!
ResponderEliminarObrigado!
Abrações também para ti!
► Pinguim, esqueci-me de dizer, este post é muito calmo, muito relaxante (acho eu e a música ajuda). A mim, dá-me vontade de me deixar embalar!
ResponderEliminarOra ai está um post diferente, quase ZEN! Adorei! Abraços.
ResponderEliminar► ImpossiblePrince, não me tinha lembrado, mas é isso mesmo: zen. Claro, é um zen já um bocadinho adulterado pelo gosto mais ocidental. mas é para voar como o menino da primeira fotografia, ou ficar à espera que venha um anjo segurar-nos nos braços...
ResponderEliminarabraço tb para ti
Canto gregoriano leva-me às nuvens.
ResponderEliminarO texto é muito bom e deixa-nos bem presos até a desfeche com as "metáforas morais".
E com tudo isto, lá vou eu fazer umas pesquisas complementares...
Eu êxtases não é o meu forte, mas aprecio muito o que resulta da arte que os retrata ou que os veícula. Assim, aguço-te apenas o apetite para experiências de fruição arquitectónica onde podes sentir os clamores místicos: a rota do pré-românico asturiense, a abadia cisterciense de Clarivaux (Claraval), o austríaco Mosteiro de Melk (lembras-te do Nome da Rosa?) e o Santo Sepulcro de Jerusalém - assisti lá dentro a uma procissão ortodoxa que mudou a minha vida, rsrsrsr).
ResponderEliminarEste post está uma maravilha. Já conheces as Cantigas de Afonso X?
Para mim as metáforas são como as pirâmides (umas putas), mas rendo-me definitivamente à do número 69. Está proibida qualquer interpretação cabalística, eh eh eh eh...
► Amigo Tongzhi, às nuvens? bem, não era preciso tanto, embora te imagine bem mais terreno e mundano!
ResponderEliminarBoa pesquisa, pois então!
Abraço
Boa pergunta, Paulo! Sinceramente não te sei responder... :(
ResponderEliminarHá muito que detectei esse problema, devido às reclamações que me foram fazendo. Já tentei resolvê-lo, mas até agora não consegui. Provavelmente deve-se ao template XML que tenho ou ao programa de feeds do Público que estupidamente se apropriou do meu blog...
Por enquanto a única solução é ires lá passando, pois eu costumo postar com regularidade.
PS: Se souberes duma solução para o meu problema, envia-me um mail pff...
► Caro Catatau, sim, tu é mais cavalgar em pêlo... lol (não podia esquecer-me dessa, 'tá visto...)
ResponderEliminarquanto a devaneios arquitectónicos, não conheço o pré-românico asturiense, pois que não, mas conheço o românico cantábrico (um dia destes virão as fotos!) e fiquei ainda mais apaixonado. e gosto mais do românico do que do pré-românico, essencialmente pelo simbolismo. de resto, falto isso tudo que mencionas e só espero que a minha vida também mude quando vir essas procissões ortodoxas.
e, sim, conheço as Cantigas... bem, não as li de fio a pavio, como deves imaginar (até porque tenho mais que fazer), mas gosto sobremaneira da cantiga 100, por, já agora, La Capella Reial de Catalunya e Hespèrion XX.
não atingi essa das putas pirâmides lol e não pus o fragmento 69 para interpretações cabísticas, mas enfim eu já devia imaginar que alguém ia pegar no número e fazer número :)) e centra-te lá no conteúdo. mas é um prazer saber que gostaste!
um abraço, gajo
► Paracletus, também não sei muito bem como resolver o teu caso... mas podes ver mais ou menos o que se passa se fores às DEFINIÇÕES do bloger, à secção SITE FEED... e sempre te podes inscrever no FEEDBURNER, é gratuito e fácil (embora já tenha feito há muito e não saiba explicar muito bem como é). depois colas o endereço do feed no respectivo espaço reservado para o efeito "URL de redireccionamento de feed de mensagens". Provavelmente, já fizeste isso tudo, mas também não sei muito bem como ajudar mais!
ResponderEliminarVou tentar não me esquecer de passar por lá!
abraço
Paulo já fiz isso há bastante tempo, mas continuou tudo na mesma... :(
ResponderEliminarEnfim, é um problema que me transcende.
Obrigado na mesma pela dica.
Hespèrion XX é uma delícia e o românico cantábrico também. Já te disse como fui tão feliz (em pêlo!) em Santillana del Mar? :D
ResponderEliminarA das pirâmides tem a ver com uma anedota de um viajante de trazer por casa a armar-ó-cágado. :)
Paulo
ResponderEliminarEis um dos mais belos post que li nos ultimos tempos (que me perdoem todos os outros bloguistas). Se soubesses como me tocou e encantou.
Um bj grande e obrigada.
Parabéns!
Paulo: as fotografias são belíssimas...
ResponderEliminarQuanto ao texto já adivinhas a minha opinião!
Olá:)
ResponderEliminarParabéns pelo novo layout:)
E pelo texto:) Belíssimo:) Arrebatador:) Místico, mas também passível de outras leituras... (Não comentarei a imagem que o acompanha)
E a música:)
Abraço:)
► Paracletus, se já tentaste... é a transcendência a fazer-se ouvir, está visto!
ResponderEliminar► Catatau, não, não me tinhas dito dessa felicidade na fantástica Santillana del Mar. E foi só em Santillana? humm, cheira-me que não! a Cantábria é propícia à coisa...
ResponderEliminaressa de mandares anedotas em que sou ignorante não tem piada!
► Jasmim, não deves agradecer-me a mim, mas à Hildegard, a Bernini, a Ramon Llull, aos fotógrafos. Feliz, ou infelizmente, o meu único mérito foi ter feito uma grande salada russa, misturado tudo. Só fico feliz por ter resultado e por teres gostado e tecido tão rasgado elogio! Obrigado!
ResponderEliminar► Caro SP, tive sorte na escolha, não foi?! Também gostei muito delas! De resto, sim, já imagino, portanto, obrigado!
ResponderEliminar► Kapitão, obrigado, pouco a pouco o layout vai ganhando consistência.
ResponderEliminarQuanto a esta entrada, não precisas sequer de comentar! imagens, música e citações "falam" por si!
um abraço
Ah afinal tb és dos que tem comportamentos obsessivos quando encontras un assunto que te interesse? Começo a suspeitar que é mais vulgar do que pensava.
ResponderEliminarManuel, sim, sou um bocadinho assim, maníaco (ainda não se tinha notado?). sei que fica sempre (e neste caso, ficou muito, MUITO) por dizer, mas vale a intenção. e sim, é um fenómeno comum, diria eu, entre alguns mortais. ficar pela rama é mais fácil e facilita quem lê, mas sinceramente não me satisfaz: como dizia certa professora é pegar num fio de cabelo e dividi-lo em dois (não é em metade). quer dizer, agora não sei se me fiz entender...
ResponderEliminarNão sou muito dado a místicas se bem que sempre me senti fascinado com a mitologia. Confesseo que comecei este post pelo fim e já estava com ideias completamente erradas sobre o Amigo e o amado. Será que são mesmo erradas, ou a minha mente é que é demasiado perversa?
ResponderEliminarUm abraço
► Special, o transcendente sempre me fascinou. A mitologia para mim é a melhor das ficções, uma novela de personagens e histórias e intrincados inesperados, inusitados. Adoro mitologia. Quanto a ideias erradas, nada disso, pois como eu disse pode ser interpretado segundo diversos primas, nada de errado na tua mente perversa!
ResponderEliminarabraço também para ti!