domingo, 23 de setembro de 2007

..:: palavras que nos salvam ::.. «Amar não acaba» por Lispector

Esta citação podia seguir vários caminhos, mas vai directamente para a Fernanda e para as mães, as nossas e vossas. A mãe que escreveu isto é grande e basta. Inspirem-se.


As três experiências


Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou a minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. "O amar os outros" é tão vasto que inclui até o perdão para mim mesma com o que sobra. As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida . Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca.
E nasci para escrever. A palavra é meu domínio sobre o mundo. Eu tive desde a infância várias vocações que me chamavam ardentemente. Uma das vocações era escrever. E não sei por que, foi esta que eu segui. Talvez porque para outras vocações eu precisaria de um longo aprendizado, enquanto que para escrever o aprendizado é a própria vida se vivendo em nós e ao redor de nós. É que não sei estudar. E, para escrever, o único estudo é mesmo escrever. Adestrei-me desde os sete anos de idade para que um dia eu tivesse a língua em meu poder. E no entanto cada vez que eu vou escrever, é como se fosse a primeira vez. Cada livro meu é uma estréia penosa e feliz. Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que eu chamo de viver e escrever.
Quanto aos meus filhos, o nascimento deles não foi casual. Eu quis ser mãe. Meus dois filhos foram gerados voluntariamente. Os dois meninos estão aqui, ao meu lado. Eu me orgulho deles, eu me renovo neles, eu acompanho seus sofrimentos e angústias, eu lhes dou o que é possível dar. Se eu não fosse mãe, seria sozinha no mundo. Mas tenho uma descendência, e para eles no futuro eu preparo meu nome dia a dia. Sei que um dia abrirão as asas para o vôo necessário, e eu ficarei sozinha: É fatal, porque a gente não cria os filhos para a gente, nós os criamos para eles mesmos. Quando eu ficar sozinha, estarei seguindo o destino de todas as mulheres.
Sempre me restará amar. Escrever é alguma coisa extremamente forte mas que pode me trair e me abandonar: posso um dia sentir que já escrevi o que é meu lote neste mundo e que eu devo aprender também a parar. Em escrever eu não tenho nenhuma garantia.
Ao passo que amar eu posso até a hora de morrer. Amar não acaba. É como se o mundo estivesse a minha espera. E eu vou ao encontro do que me espera.

Clarice Lispector »» A Descoberta do Mundo (Nova Fronteira) »» pp. 135-137

4 comentários:

  1. É muito importante , por vezes, olhar o Amor de outra forma. diferente daquela a que quase sempre nos referimos e que é amar alguém que connosco partilha esse sentimento.
    Entre essas diferentes formas se amar, está o amor de família, de pais e mães pelos filhos e vice-versa, entre irmãos...
    Mas, dentre todos estes, é sem dúvida o Amor de uma mãe, o maior, pois só elas nos transportou, alimentou e nos deu vida; para uma mãe, o amor para com os filhos é algo que ultrapassa o normal, para se tornar numa coisa para a qual não há classificação, a não ser a mais bela e a mais simples: Amor de Mãe!

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  2. Com efeito, o amor pode ter muitas formas. O amor pela família e amigos não é menos importante que o que sentimos por quem connosco partilha as mesmas horas. Às vezes, esquecemo-nos dos outros e pensamos muito em nós, mas que seríamos se não olhássemos à nossa volta?
    Claro que com a Mãe, a coisa complexifica-se, ganha contornos de mais forte cumplicidade e partilha.

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  3. Escritora extraordinária que tu me apresentaste, Paulo!

    Quem dera que toda a gente - sobretudo as mães - tivessem a mesma experiência de Clarice Lispector.

    Bjs e obrigada pela dedicatória e referência à minha pessoa.

    Fernanda

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  4. Fernanda, na impossibilidade de achar palavras para escrever sobre as nossas, lembrei-me deste texto da Lispector, de onde aliás Frederico Lourenço foi buscar o título para um dos seus livros. Acho que todas as mães são assim, preocupadas, com muito amor... mães-galinha. A mensagem é muito importante e positiva, faz-me lembrar como o amor (de todos os tipos) pode ser muito grande. Mais: a lucidez com que traça os objectivos da sua vida é incomum, sobretudo, se tivermos em conta que a vida de Lispector teve uma grande dose de dor. Temos de relevar os piores momentos e destacar os positivos, mesmo que faltem forças ou motivação, if you know what I mean.

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