O meu pai faz hoje anos. Continuo a ligar para a casa na aldeia, embora ele já lá não esteja fisicamente. Dou um beijinho à minha mãe e tento confortá-la na sua solidão.
Há muito tempo que o meu pai sofria. E continuou a sofrer depois de internado no Hospital de Santa Maria, mas tudo piorou após a operação. Começou durante o Verão com uma icterícia, uma perda brutal de apetite e uma grande fadiga. Diagnóstico: tumor no pâncreas. Numa semana foi operado. Na semana seguinte, teve uma recaída com grandes dores no abdómen. Tiraram-lhe umas substâncias escuras do estômago, que pareciam ser sangue coagulado ou fígado desfeito. Novo diagnóstico: cirrose hepática. Meses depois ainda sofreu uma broncopneumonia. Foi aí que não aguentou mais.
Católico renegado, ainda sou tentado a acreditar no post mortem. Com alguma dificuldade, sobretudo, na versão oficial que cada vez me convence menos. Apesar disso, acredito que a vida continua. A nossa e também a dele. Sei que está vivo porque vive em nós, no nosso sangue, nas paredes, nos objectos, nas recordações e em tudo o resto que contrariar o esquecimento. Raramente me visita nos meus sonhos, não faz mal: espero que isso queira dizer que está bem.
Era um homem simples, magríssimo, modesto, de carácter forte, determinado, mas não inflexível, com grande destreza física. A dor e o sofrimento tocaram-no com uma intensidade desmesurada. A minha mãe acompanhou-o todos os dias. Nós revezávamo-nos nas visitas. Eu estava a fazer o estágio nessa altura, comecei a fumar e saía sempre pior do que entrava das visitas. Mesmo quando ele piorava, afirmava estar melhor e, assim, queria que acreditássemos numa recuperação. Só que definhava a olhos vistos. Devia ser da vontade de viver e resistir. Não estava preparado para morrer. Desistiu quando viu que não havia nada mais a fazer e o fim chegou de seguida. Esteve sempre lúcido, mesmo na última visita, todo entubado, afirmando que não percebia porque o tinham mudado outra vez de sala, para aquele sítio horrível com pessoas moribundas à volta.
O seu maior feito foi ter conseguido uma família unida: seis filhos criados, grandes, respeitáveis. Nunca soube que o seu mais novo era homossexual (mas isso também nunca foi importante para mim), embora suspeitas não lhe faltassem. Foi acompanhado por uma esposa que sempre o amou, ama e amará até ao fim dos seus dias. Conheceu quatro netos. Deve ter deixado muitos sonhos por realizar, mas não creio que tivesse nenhum que fosse impossível. Conheceu montes e montes de pessoas, calcorreou quilómetros e quilómetros, ajudou muita gente e nunca pediu muito em troca. A sua vida foi uma bênção. A sua existência prolonga-se em nós: o seu sangue é o nosso, a sua beleza é a nossa. Lembrar-me-ei disso todos os dias da minha vida, porque a minha carne nasceu da sua carne, a minha personalidade formou-se com a sua educação, o meu estômago alimentou-se com a comida que, com a minha mãe, conseguiu pôr na mesa. Nós, os seis, somos um prolongamento deles. Certos de que nunca nos esquecerá, nós jamais o esqueceremos.
A sua mão fechou-se, o seu corpo traiu-o, as forças esgotaram-se, os músculos mirraram, o sorriso eclipsou-se e partiu na madrugada de 5 de Fevereiro. Sete anos depois, numa incrível coincidência, no mesmo dia, lá estava eu a defender a dissertação que lhe dediquei. “E foi assim, o impossível verídico. Muito tempo se passando num súbito repente” (Mia Couto »» “A Princesa Russa” in Cada Homem é uma Raça).
Católico renegado, ainda sou tentado a acreditar no post mortem. Com alguma dificuldade, sobretudo, na versão oficial que cada vez me convence menos. Apesar disso, acredito que a vida continua. A nossa e também a dele. Sei que está vivo porque vive em nós, no nosso sangue, nas paredes, nos objectos, nas recordações e em tudo o resto que contrariar o esquecimento. Raramente me visita nos meus sonhos, não faz mal: espero que isso queira dizer que está bem.
Era um homem simples, magríssimo, modesto, de carácter forte, determinado, mas não inflexível, com grande destreza física. A dor e o sofrimento tocaram-no com uma intensidade desmesurada. A minha mãe acompanhou-o todos os dias. Nós revezávamo-nos nas visitas. Eu estava a fazer o estágio nessa altura, comecei a fumar e saía sempre pior do que entrava das visitas. Mesmo quando ele piorava, afirmava estar melhor e, assim, queria que acreditássemos numa recuperação. Só que definhava a olhos vistos. Devia ser da vontade de viver e resistir. Não estava preparado para morrer. Desistiu quando viu que não havia nada mais a fazer e o fim chegou de seguida. Esteve sempre lúcido, mesmo na última visita, todo entubado, afirmando que não percebia porque o tinham mudado outra vez de sala, para aquele sítio horrível com pessoas moribundas à volta.
O seu maior feito foi ter conseguido uma família unida: seis filhos criados, grandes, respeitáveis. Nunca soube que o seu mais novo era homossexual (mas isso também nunca foi importante para mim), embora suspeitas não lhe faltassem. Foi acompanhado por uma esposa que sempre o amou, ama e amará até ao fim dos seus dias. Conheceu quatro netos. Deve ter deixado muitos sonhos por realizar, mas não creio que tivesse nenhum que fosse impossível. Conheceu montes e montes de pessoas, calcorreou quilómetros e quilómetros, ajudou muita gente e nunca pediu muito em troca. A sua vida foi uma bênção. A sua existência prolonga-se em nós: o seu sangue é o nosso, a sua beleza é a nossa. Lembrar-me-ei disso todos os dias da minha vida, porque a minha carne nasceu da sua carne, a minha personalidade formou-se com a sua educação, o meu estômago alimentou-se com a comida que, com a minha mãe, conseguiu pôr na mesa. Nós, os seis, somos um prolongamento deles. Certos de que nunca nos esquecerá, nós jamais o esqueceremos.
A sua mão fechou-se, o seu corpo traiu-o, as forças esgotaram-se, os músculos mirraram, o sorriso eclipsou-se e partiu na madrugada de 5 de Fevereiro. Sete anos depois, numa incrível coincidência, no mesmo dia, lá estava eu a defender a dissertação que lhe dediquei. “E foi assim, o impossível verídico. Muito tempo se passando num súbito repente” (Mia Couto »» “A Princesa Russa” in Cada Homem é uma Raça).
Um abraço Paulo.
ResponderEliminarNo lugar das faltas nascem sempre as flores mais bonitas do desejo.
Quero dizer: para lá da continuidade, da dor, da saudade, um pai/marido morto é um lugar, um topos, de auto-criacção; ou, como diz o outro, cada homem é uma raça e encontra em si os seus pais e os seus filhos. Todos os outros são amigos; grandes, mas apenas amigos...
bela, sentida e comovente homenagem. abraço.
ResponderEliminarmiguel (innersmile)
Gostei imenso deste teu texto, Paulo. Belíssimo e cheio de amor. Tens toda a razão quando dizes que o teu pai vive em vocês, carne da sua carne, e, sobretudo, nas vossas memórias. Essas, ninguém vos tira!
ResponderEliminarAmigo Mongo, como me lembro dessas coisas todas que escreves aí! Como as conheço e sei de cor, como as linhas da palma da minha mão. Já sabes porquê, nem preciso dizer...
ResponderEliminarTemos de voltar a falar no post mortem, só os 2.
Beijos adorados e muito solidários.
Monga