sábado, 8 de setembro de 2007

..:: parabéns ::.. Pai

O meu pai faz hoje anos. Continuo a ligar para a casa na aldeia, embora ele já lá não esteja fisicamente. Dou um beijinho à minha mãe e tento confortá-la na sua solidão.

Há muito tempo que o meu pai sofria. E continuou a sofrer depois de internado no Hospital de Santa Maria, mas tudo piorou após a operação. Começou durante o Verão com uma icterícia, uma perda brutal de apetite e uma grande fadiga. Diagnóstico: tumor no pâncreas. Numa semana foi operado. Na semana seguinte, teve uma recaída com grandes dores no abdómen. Tiraram-lhe umas substâncias escuras do estômago, que pareciam ser sangue coagulado ou fígado desfeito. Novo diagnóstico: cirrose hepática. Meses depois ainda sofreu uma broncopneumonia. Foi aí que não aguentou mais.
Católico renegado, ainda sou tentado a acreditar no post mortem. Com alguma dificuldade, sobretudo, na versão oficial que cada vez me convence menos. Apesar disso, acredito que a vida continua. A nossa e também a dele. Sei que está vivo porque vive em nós, no nosso sangue, nas paredes, nos objectos, nas recordações e em tudo o resto que contrariar o esquecimento. Raramente me visita nos meus sonhos, não faz mal: espero que isso queira dizer que está bem.
Era um homem simples, magríssimo, modesto, de carácter forte, determinado, mas não inflexível, com grande destreza física. A dor e o sofrimento tocaram-no com uma intensidade desmesurada. A minha mãe acompanhou-o todos os dias. Nós revezávamo-nos nas visitas. Eu estava a fazer o estágio nessa altura, comecei a fumar e saía sempre pior do que entrava das visitas. Mesmo quando ele piorava, afirmava estar melhor e, assim, queria que acreditássemos numa recuperação. Só que definhava a olhos vistos. Devia ser da vontade de viver e resistir. Não estava preparado para morrer. Desistiu quando viu que não havia nada mais a fazer e o fim chegou de seguida. Esteve sempre lúcido, mesmo na última visita, todo entubado, afirmando que não percebia porque o tinham mudado outra vez de sala, para aquele sítio horrível com pessoas moribundas à volta.
O seu maior feito foi ter conseguido uma família unida: seis filhos criados, grandes, respeitáveis. Nunca soube que o seu mais novo era homossexual (mas isso também nunca foi importante para mim), embora suspeitas não lhe faltassem. Foi acompanhado por uma esposa que sempre o amou, ama e amará até ao fim dos seus dias. Conheceu quatro netos. Deve ter deixado muitos sonhos por realizar, mas não creio que tivesse nenhum que fosse impossível. Conheceu montes e montes de pessoas, calcorreou quilómetros e quilómetros, ajudou muita gente e nunca pediu muito em troca. A sua vida foi uma bênção. A sua existência prolonga-se em nós: o seu sangue é o nosso, a sua beleza é a nossa. Lembrar-me-ei disso todos os dias da minha vida, porque a minha carne nasceu da sua carne, a minha personalidade formou-se com a sua educação, o meu estômago alimentou-se com a comida que, com a minha mãe, conseguiu pôr na mesa. Nós, os seis, somos um prolongamento deles. Certos de que nunca nos esquecerá, nós jamais o esqueceremos.
A sua mão fechou-se, o seu corpo traiu-o, as forças esgotaram-se, os músculos mirraram, o sorriso eclipsou-se e partiu na madrugada de 5 de Fevereiro. Sete anos depois, numa incrível coincidência, no mesmo dia, lá estava eu a defender a dissertação que lhe dediquei. “E foi assim, o impossível verídico. Muito tempo se passando num súbito repente” (Mia Couto »» “A Princesa Russa” in Cada Homem é uma Raça).

4 comentários:

  1. Um abraço Paulo.
    No lugar das faltas nascem sempre as flores mais bonitas do desejo.
    Quero dizer: para lá da continuidade, da dor, da saudade, um pai/marido morto é um lugar, um topos, de auto-criacção; ou, como diz o outro, cada homem é uma raça e encontra em si os seus pais e os seus filhos. Todos os outros são amigos; grandes, mas apenas amigos...

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  2. bela, sentida e comovente homenagem. abraço.

    miguel (innersmile)

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  3. Gostei imenso deste teu texto, Paulo. Belíssimo e cheio de amor. Tens toda a razão quando dizes que o teu pai vive em vocês, carne da sua carne, e, sobretudo, nas vossas memórias. Essas, ninguém vos tira!

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  4. Amigo Mongo, como me lembro dessas coisas todas que escreves aí! Como as conheço e sei de cor, como as linhas da palma da minha mão. Já sabes porquê, nem preciso dizer...
    Temos de voltar a falar no post mortem, só os 2.

    Beijos adorados e muito solidários.

    Monga

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