domingo, 27 de janeiro de 2008

..:: artista da semana ::.. ALTARES PRIVADOS [II]

O valor do ícone varia, como toda a arte, do olhar do espectador. Nesse sentido, o conceito de sagrado pode tornar-se infinito. Prefiro não ter muitas certezas e assentar a responsabilidade no lado do espectador. Talvez sobrevalorize a subjectividade e as capacidades do "consumidor"; é possível que sim, todavia, acho mesmo que tem de ser este a situar o que considera ou não sagrado, belo, sublime, de culto. De facto não me choca que as fronteiras do sagrado, do belo, da arte, do género, etc., sejam esticadas ou até apagadas até criarem a dúvida ou confusão nas nossas mentes. Gosto que isso aconteça.
Lembrei-me de dizer isto a propósito do "Altar Privado" inédito que está aqui em baixo (motivo que me levou a regressar aos seus trabalhos que já tinha mostrado aqui). Pode ser muito ousado, explícito, queer, gay ou não, depende do olhar, porque os ícones (inclusive os sagrados) sempre destacaram o corpo, nem que seja para evidenciarem a imortalidade dos deuses face à mortalidade dos homens. Os chamados mitos modernos são uma subversão disso mesmo, dando conta da nossa necessidade de nos sobrepormos ao poder divino: o corpo do herói que morre tragicamente jovem mas cuja memória se propaga e reproduz em série, processo predilecto do kitsch, às vezes próximo do mau gosto, outras adquirindo um sentido e gosto estético único. É por isso que gosto destes trabalhos únicos e irrepetíveis como os que nos oferece os Altares Privados e da inadequação que este registo aqui reproduzido provoca. O efeito kitsch procede então de duas atitudes diferentes: por um lado, deriva das qualidades formais do objecto - o registo com uma tradição forte -, por outro, resulta das combinações que se fazem de objectos que, isolados, pouco têm de kitsch*.
Quem quiser que fique chocado, mas à partida só ressalvo a provocação. Por mim, até lhe acendia uma velinha.


© Altares Privados, Inédito

* (cf. Matei CALINESCU, "Kitsch", in As Cinco Faces da Modernidade: Modernismo, Vanguarda, Decadência, Kitsch, Pós-modernismo, tradução de Jorge Teles de Menezes, 1ª ed., Lisboa: Vega Editores, 1999, pp. 201-229)

2 comentários:

  1. No outro dia ouvi isto num episódio do CSI: "a diferença entre o kitsch e o belo é o tempo". Abraço!

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  2. Um boa reflexão, Paulo, e um altar que me faz lembrar um que tenho em casa. Vai na volta foi por isso que tive particular gosto em ler o que escreveste.

    E sim, tens toda a razão quando dizes que "os ícones (inclusive os sagrados) sempre destacaram o corpo, nem que seja para evidenciarem a imortalidade dos deuses face à mortalidade dos homens." Comprovo-o com o que tenho aqui ao meu lado, que destaca a fertilidade por via do tamanho do... :p

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