sábado, 17 de outubro de 2009

o teu panegírico!

A narradora de A República dos Sonhos começa assim a sua história:
«Eulália começou a morrer na terça-feira.»


Começar um romance assim é como chegar junto do leitor e dar-lhe de imediato uma bofetada, surpreendendo-o. Eu, pelo menos, fiquei nem sei se comovido, se chocado. Mas cativou-me. O romance é um dos mais conhecidos da brasileira Nélida Piñon. E Eulália morre lá para o final, umas 730 e tal páginas depois.

Aquariana, a caminho dos 52 anos, acordou na manhã de 17 de Julho com visão dupla. Foi para o Hospital da Luz. Não sei se começou a morrer aí, se antes. A verdade é que desde nascermos somos seres para a morte, Heidegger dixit. No hotel Hospital da Luz, comunicaram-lhe a descoberta de uma massa no interior do cérebro e a partir daí deram-lhe vários diagnósticos. Todos errados. Para descontrair, e se era uma massa, dizia que tinha de ser espaguete. Não queria ver as pessoas com pena dela. Soube depois que podia ser uma tuberculose cerebral(?) ou um tumor. Nunca nada de concreto. No Hospital dos Capuchos, duas semanas antes da morte, deram-lhe o diagnóstico definitivo: linfoma. Nessa altura já estava em coma. Mas já antes sabia que ia morrer e não estava preparada.

Mulher da viola d'arco. Arquitecta que preferiu entregar-se às artes do ensino. Bem, nós não estávamos preparados, essa é que é essa! Tínhamos concertos para assistir num futuro qualquer. Tínhamos um quadro meu com dedicatória e tudo para lhe oferecer. Tínhamos um postal e selo destinados para lhe mandar. Ah, e havia o nome com que às vezes me chamava: Zoninho. Achava piada - ela e eu. Era o -inho do costume, mas não em Paulo, pois gostava de ser diferente e pegou na particularidade do meu endereço de email. Em homenagem, por aqui, virtualmente, rebaptizo-me em sua memória: serei o Zoninho.

Uma semana depois, ainda o meu luto. A alma mais enrugada e a óbvia constatação de que há partidas sem regressos. E de que a morte não tem nada de simples nem linear.

Uma vez, perguntou-me quem me tinha feito tanto mal para eu ser assim: imediatamente sorridente mas tão contorcido, tão enrugado e partido por dentro. Respondi que não sabia e fui sincero, acho que ninguém; embora desconfie que a minha memória arranja mecanismos de ocultação bastante eficientes e, à distância, tudo fica minimizado, reduzido a pormenores de caricatura e humor negro. Acabávamos a conversar sobre aquilo que eu achava que motivava as pessoas a cruzarem-se e a desenvolverem laços ou a desprenderem-se mais tarde desses mesmos laços, seguindo caminhos diferentes, com o sentido de missão cumprida.

E encerro o assunto com a sensação de que tanto entre nós os três ficou por dizer/fazer. Muito provavelmente teremos de nos encontrar em vidas futuras para terminar o enredo. Encerrando o assunto, só espero que não seja moda! Sim, é a 2ª pessoa ligada ao ensino que esteve nesse 1º piquenique nas Caldas e que em 2009 morreu por causa de cancro. Sim, está nesta fotografia e era, como o Zé lhe chamou, um verdadeiro furacão: tinha energia para dar e vender. Agora não tem mais.



Foi um prazer! Sentimos a tua falta! Fazes-nos falta!
Bem-hajas por tudo o que nos deste!








p.s. 1 ► Escrevi duas entradas particulares sobre si: uma explicação sobre como nos conhecemos »» e um comentário por altura do seu quinquagésimo aniversário »»
p.s. 2 ► Há quatro comentários particulares e especiais que nos deixou: várias coisas, incluindo o ensino »» + a amizade e as alianças que eu e o Zé passámos a usar »» + a homossexualidade e a hipocrisia (seguido de um comentário do Catatau) »» + o último comentário assinado como "a cota" »»

11 comentários:

  1. Não tenho palavras para expressar a emoção que senti ao ler este teu texto. Pensei nas pessoas que me são queridas. Pensei em alguém em particular e senti um aperto enorme, avassalador.

    Mas, olhando o mesmo texto e a emoção sentida só posso dizer (e acredito que vós façais o mesmo!): ainda bem que pudestes conhecer esse ser tão especial e conviver com ele! Foi uma graça, um pedacinho de paraíso!

    Abraço aos dois

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  2. Lamento. Lamento que tenhamos perdido um bom ser humano aos 52 anos. E lamento que tenham perdido uma boa amiga.

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  3. Um enorme abraço, Paulo; acho lindo que comeces a adoptar esse nome, "oferecido" pela Teresa, aqui no blog, mas só ela deveria ter o privilégio de te poder saudar assim; por isso serás sempre o Paulo, como o Zé é o Zé e os dois são os FJ.
    O texto está maravilhoso e os "apêndices" ajudam a perceber a excelente pessoa que era a Teresa.

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  4. É uma pena que tenha partido.Era uma mulher que não passada despercebida e não me deixou indiferente. A última vez que estive com ela foi do desfile de máscaras ibéricas (em Maio?) e não me passava pela cabeça que uns meses depois já não estivesse entre nós.
    Mas o que interessa lembrar é que esteve. Que nos tocou e que esse toque por mais indelével que tenha sido aconteceu.
    Um grande abraço, feejays, nestes momentos em que a saudade torce e retorce o coração.

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  5. A saudade que um grande amigo nos deixa é uma coisa lixada. Não encontramos palavras e recordações que atenuem a partida. Mas a vida é assim e com o tempo vamos recordando os momentos em que essa pessoa nos marcou.
    Abraço para os dois

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  6. De facto, nunca estamos preparados para perder as pessoas e possivelmente os ensinamentos budistas têm todos razão: devemo-nos preparar para morrer a todo o instante. Essa lucidez requere-se e nunca a temos.
    Tanto quanto me lembro a Teresa tinha filhos (uma filha?) e isso, pela parte que me toca, deixa-me consternada.
    Não há uma hora em que nos habituemos à perda.

    Um beijinho muito grande e parabéns pelos teus textos elogiosos aos amigos. Não deixas nada ao acaso...

    Monga

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  7. Nâo me vou prolongar muito em palavras, Zoninho (este é, possivelmente, o nome mais bonito que poderias adoptar, por razões óbvias). Estes post's caíram-me no colo como um bloco de cimento.
    Tenho uma amiga com um linfoma. E faz os tratamentos no Hospital dos Capuchos. Nem sei bem o que escrever... mas ler tudo aquilo que escreveste mexeu comigo. Comoveu-me. A amizade talvez seja o maior amor de todos. Não sei. Mas está para além de toda e qualquer doença que corroa o corpo e a mente. Vive para além da morte. É nisso que acredito.

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  8. Post Scriptum:
    Se tiveres curiosidade:

    http://umtudocheiodenada.blogspot.com/2009/06/ele-ha-cada-besta.html

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  9. Acredito que esse seja o verdadeiro desafio da vida... não apenas o de saber vivê-la enquanto seres vivos que somos, mas o de prevalecer na memória daqueles que se cruzaram connosco e ficaram. Neste aspecto, sim. Acredito que há vida para além da morte.Assim como acredito que a Teresa continua viva, não em corpo, mas na memória de todos aqueles que a amam. Sabes, o meu maior desgosto seria o de morrer e não ser recordada...

    Obrigada pelas tuas palavras, a sério... O mais ridículo é ter uma amiga, uma miúda de 26 anos com um cancro a perguntar-me se ela teria sido assim tão má para merecer o que lhe estava a acontecer... A minha resposta? Um abraço. Não havia resposta. Se pensássemos dessa forma o Bin Laden, por exemplo, seria torturado de todas e quaisquer formas, desde que fossem bem macabras.

    Beijo

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  10. Olá,

    Primeiro que tudo venho agradecer a visita e o "seguimento". Concerteza, e não por uma política de "toma lá, dá cá", também vou passar a visitar este mundo tão bem partilhado a dois, ou deverei dizer no plural?
    Deixo o meu comentário aqui... porque de certa forma me identifico... contigo pela parte do sorriso fácil, do amar muito mas com um lado contorcido, "dificil" de quem já sofreu.
    Com a Teresa... porque também já perdi alguém assim... demasiado novo, demasiado amigo, demasiado para dar... e vencido pela doença que o levou.
    Também me marca todos os dias... e já vão mais de dois anos... e também é ele que me nomeia nestas lides - por muito que já tenha tentado fugir a este "nome". Fez de mim... mais eu... por muito que em certos dias... a saudade e a memória façam doer.
    Agora vou ler o resto do teu mundo... vosso?... e logo se verá se em silêncio ou não... :)

    Um beijinho,

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