sábado, 21 de julho de 2007

..:: paulo post ou um pouco depois ::.. Monga II

Não sou nada do tipo “homem não chora”. É muito fácil fazer-me chorar, embora também tenha aprendido a controlar as lágrimas. Quem me conhece sabe como me tocar: um acontecimento brutal, por exemplo, um texto ou uma despedida. Mas há uma forma muito fácil que só o Zé conhecia – e, atenção, segue-se um momento de humor: o Nestum Mel faz-me chorar. Eu sei, não é normal, mas explico.

Aviso: segue-se um parêntesis longo.

O Nestum fez parte da minha dieta do tempo de estudante quando ainda calcorreava as montanhas. A minha mãe preparava-o todos os dias, por volta das 6h30m. Foi assim quase sempre durante 5 anos (2º e 3º ciclos). Mas chegou um tempo em que me enjoei de Nestum e a minha mãe começou a fazer-me torradas e outras coisas. O Nestum era mais fácil, claro, e rápido. Depois do Nestum, descia a pé a encosta num percurso de 2 km. Às vezes, caminhava, outras corria até me faltar o fôlego – nos dias em que demorava mais a levantar-me –, quase sempre ainda de noite (ou ao alvorecer). À tarde (melhor, quase à noite), sempre me esperou o mesmo percurso inverso, muito mais difícil, a subir, e cansado do dia. Por causa desse cansaço, aprendi a dormir com a cabeça encostada ao vidro do autocarro escolar a cair de podre, abanando e ruindo por todos os lados, por alcatrão esburacado tipo crateras, com o acréscimo do barulho d@s outr@s menin@s – e, hoje, durmo em qualquer lado. Às vezes, demorava horas a fazer o percurso que de manhã fazia em cerca de 20, 25 minutos. Sem o saber, aprendi nessa altura o que era a solidão. E para me fazer acompanhado, o eu começou a falar comigo. Raramente, tinha companhia e menos ainda boleia. Podia ir por uma estrada alcatroada ou pela de terra batida, que era a minha predilecta. Portanto, foram dias e dias de percursos, quilómetros de completo pensamento comigo mesmo. Era eu e o mato. E isso fez de mim um solitário com dificuldades de comunicar o que sinto, visto que falando comigo, por que fazê-lo com os outros? Além disso, continua a ser-me custoso interagir. Nesses percursos, por vezes, apareciam alguns bichos, nevoeiro, chuva, trovoadas. Mas era tudo natureza pura e eu. Impossível esquecer.
Também poucas pessoas sabem destas coisas muito minhas, pois não têm de levar com o meu passado em cima e não gosto de o usar para me vitimizar/ chamar a atenção, et cætera. Algumas vezes, a minha mãe (ou o meu pai, quase sempre a minha mãe) corria para me ir buscar, sobretudo quando não me tinha prevenido de manhã com chapéu-de-chuva ou estava alguma trovoada impossível. Pequenas coisas de que não me esquecerei porque me borrava de medo (o qual tive de aprender a enganar). Portanto, estes foram uns 5 longos anos, de muitos quilómetros. Foi ainda o período mais longo que vivi com os meus pais (a escola primária fi-la em casa de meus avós, a minha primeira incursão no silêncio e na solidão, e depois segui para Castelo Branco, seguindo-se Lisboa). Isto não se passou assim há tanto tempo, mas faz parte de um outro mundo meu. Não sou especial por causa disto, mas diferente com certeza que sim: poucos terão experimentado o mesmo.
Não voltei a comer Nestum (ou seja, há mais de 15 anos). Um dia, só ao sentir-lhe o cheiro, veio de chofre a memória toda destes tempos: as saudades incomensuráveis, uma mistura de tristeza com alegria (porque era realmente feliz, ignorando-o), acrescentando-lhe a falta de meu pai e a necessidade de sentir também o cheiro da minha mãe. Indescritível. Foi uma ferida nunca sarada que se expôs violentamente. E chorei até esgotar as forças. Tudo por causa daquele cheiro. A cena voltou a repetiu-se, entretanto. Consequência: não vale falar ou oferecerem-me Nestum, ok!

Esta longa introdução vem por causa deste post da Monga, que me fez retroceder no tempo, impelindo-me às lágrimas. Por muita coisa, e porque «Temos alguns mortos de intervalo / a melancolia de quem muito / contemporizou / e saber, dos espelhos, o jogo» (Eduardo Pitta, Poesia Escolhida, p. 91). De facto, a Diana tem razão: temos a ferida dos pais ausentes, mais outro milhão de coisas. Por agora, fico por aqui. Ah, também eu tenho uma caixa cheia das tuas cartas generosas. Obrigado, Monga!

A Fernanda e o Pedro, muito felizes juntos, no dia do seu casamento muito pouco tradicional.

P.S.: Reparem bem nos olhos da Fernanda. São lindos e combinam com o vestido.

8 comentários:

  1. Meu querido, desconhecia a história do Nestum Mel, mas tenho exactamente a mesma reacção com o Cerelac que a minha mãe me dava às colheradas a ver se eu engordava. Um dia destes escrevemos os dois à Nestlé a reclamar ou a agradecer, porque realmente são nessas pequenas coisas que as pessoas que amamos tanto estão vivas.
    Mongo, essa foto que colocaste aí não me favorece...

    Beijo grande da tua Monguinha.

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  2. ... eu nunca tive direito nem a Nestum nem a Cerelac - isso era um luxo lá em casa! Mesmo assim, sem papas e com caminhadas longas para fazer, sobrevive-se e com uma riqueza adicional: as memórias boas que nos fazem chorar. É maravilhoso conseguir pensar num cheiro ou numa imagem e re-sentir o que julgávamos já desaparecido de dentro de nós!

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  3. Brisa, acho que desprezamos um pouco o olfacto e, perante estas situações, constatamos que afinal ele é poderoso a activar a memória. Vivam os cheiros que nos reenviam ao vivido!

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  4. Mongo, bota uma foto minha bonita, uma do casamento, p.ex.

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  5. que belo texto. visitei o teu blog e gostei muito.
    miguel (innersmile)

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  6. Obrigado Miguel , também já visito o teu blog há algum tempo (bastante mesmo) e também sempre gostei de te ler. Acho que não tenho de te dar os parabéns porque já manténs o innersmile desde 2001... mas parabéns na mesma! :) É preciso ter fôlego.

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  7. Comigo foi o "porrigde" ad nauseam. Mas é curioso contentamento que vejo os meus Manelinhos deliciarem-se com este pequeno almoço que o meu pai perpetuou para a geração dos netinhos.
    Gostei muito deste teu texto. Estou de regresso e ávida para matar as saudades do "Felizes Juntos"!

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