sábado, 12 de abril de 2008

..:: palavras que... ::.. Joaquim Manuel Magalhães

Homossexualidade

para o Luis Muñoz



1

Numa nação de alternativa desolada
dificulta uma segura reivindicação.
Pouco nela frutifica.
A cabaça, o aroeiro, a arnica.
Pondero o alcance do tiro.
Quem encobre a sua natureza
acaba entaipado na janela.
A rejeição agrava
a presença camuflada.
Que germinará dela?

Inerte.

Se tivesse partido (pensei nisso
muito) perdia-te.
Não saí.
Enfrentei o prado que apedreja
e elegi
vincar a minha condição.

Indesejado.

Amanhã, o encantado aguardei.
Ameaçador e familiar, de sempre
e sempre comovente, beijo que dei
e que me deu.
Não o lôbrego entardecer.
Melhorar o presente.

Amplidão.

O aguaceiro recobria o corpo nu,
a sagacidade da ira. Uma agitação ardia.
Tu.

Ronda.

Era a minha décima oitava travessia de junho
e encontrei em dezembro o convite a tonalidade
o ombro no metal da coluna vizinha. Vinha.



2

Não vou seguir a prática actual da lírica.

Afirmo, homossexual. Silencia
o Código Civil a garantia
da pluralidade da orientação sexual.
Desacato e desamparo ao projecto
de uma relação perdurante.
Balança, não o percebe um conservador?,
do equilíbrio da integração
ao que desse modo a pretender.

Vivo com o João há quarenta e um agora,
um nada, Fevereiro 2005. A dignidade inteira
de cidadão por atingir. O par, uma caminhada,
não um exemplo. A vicissitude
cruza o habitual
oblíquo apaziguamento.

O sexo é a banalidade, obriga entre
adultos à licitude absolutamente comum.
A ossatura do usual necessita
para o temeroso do que fermenta
um apoio legal
para nítida harmonia e agasalho.

A partilha da Segurança Social,
do Serviço de Saúde, a protecção
da reforma ao sobrevivo
e uma herança intributável.
Durante a vida parece aguentar-se
a anomalia,
porém à morte do primeiro
logo intervém a felonia.

74 – interrogo-me – uma
revolução. Repudiou, na demanda
de aniquilar a economia, uma invenção
de pulso contrário ao continuado
precipício.
A um centro vital desinteressou o progresso
de um consenso que exigia a lentidão,
é tarde, para não forçar clivagem.
Lá reside a culpa, o incumprimento,
o atraso deliberado.

Um verso confronta uma ordem
enferma. Dissipará o seu sentido,
alheio à literatura, ao findar
a sua oportunidade.
Não o empenha convir à poesia.
combate um regime desavisado,
falho na educação gradual da maioria.

Mero comparsa do preconceito, o Direito
Civil, uma ética judicial mata-borrão
da inépcia civilizacional, da moral corrente.
A tortura vagarosa que daí resulta
promove-a por omissão um Código imoral,
torcionário inviamente,
torna-se Código de Direito Penal.

Oito ou nove por cento de povo inegável
não é um zero de humano.
A revolta com diálogo sucederá.
Insolúvel por referendo. Enraizável
pelo próprio decreto, caso promulgado
pela placidez e não pelo pregão
de um conjunto parlamentar isolado, ultrapassável
pela zanga de uma larga comunidade.

Não tombasse no desentendimento mútuo
nenhum grupo ou indivíduo homossexual.
Inadmissível a mínima razão
(creio que com mágoa se conviverá
com a homofobia, a misoginia, a xenofobia
e com a heterofobia, importará
a possibilidade de a lei erguer um contraforte).
A perfeição do encéfalo incompleta.
Unir-nos-ia a nossa realidade notarial.
A partir dela tente-se o acordo
com tudo o que não fomente o retrógrado.
Também com o poder, o que governa
e o da variedade partidária,
(qualquer que pressinta o renovar).

Não me dirijo ao como eu, sim
ao heterossexual. Cometê-lo à persuasão.
Conciliado, suponho que consegue
impelir para um senso de civilidade
o recuado.
Ao aceder, seria o motor assente
Do direito procurado.
Péssimo poema, já sei. Só me preocupa
A vontade de dizer.

Compreenda um conservador
que argumente o primado da pacificação
política ao vínculo cível do comportamento.
De novo: sem referendo.
De novo: para o sossego de morrer.
Pactuar com ele a confiança
em acareamento frontal.
e final.



3

Sento-me. Não longe
a velhice. Serei ainda eu?
O soluço da luminosidade adormeceu.

A mente ilude
o consolo. Asa
na nervura de um ninho,
voará quando a neve endurecer
no azevinho.

O agregado de gente sem cerne
um volume contra a porta,
proibição.
Rompimento que sente
a mão
uma por uma ausente.

A troça, uma teia indiferente
de que me ri.
Conflito com sinal de movimento
na permanente decepção.
O valor do seu augúrio
não cessa de apelar à negação
cuja derrota mal pressenti.

Uma claridade que me guia
para alguém que sofre.
Pavor de som que soterrado invade
e a felicidade fraudulenta finge
fundir na caserna da náusea.
Um rebentamento pedaço a pedaço.
Uma claridade que me guia
e calcina o meu cansaço.

Menos em clínica privada
não autorizariam que nos acompanhássemos
em situação concreta.
Até para conduzir a hora do fim
outrem o faria.
O que evidencia a diferença. Portanto,
quando usam essa noção
ocorre a forma global do interdito
e da recusa. Ao declarar
a prerrogativa da diferença
não concebo o grito
da gruta da igualdade.



4

EU

O pano da cadeira
um barco que nos embalava.
Premonição, lugar, luzeiro
passaram. A inquietação insubmissa
na cabeça encanecida.

Vogo no prazer que, de tanto, doía
e tu vês eu ver-te e reclina
o triunfo da memória antigo.
Persigo o ataque onde navegaria.
O imenso da sabotadora alegria.


ELE

No elevador o nosso calor subia,
era fácil arrumar o carro
no Outrora da cidade
que não dava a cidadania. Acusava
a ditadura como errava:
assim o que temos diante hoje em dia.

O volante num único braço,
o outro prendia o teu
aberto e entregue e a beira-rio
aumentava na rua o frio
roubado à euforia.
Teimava o halo do candeeiro.
Ao seu lume acordava
a pele do teu travesseiro.


EU

Atear a música.
A camisa enodoava no suor
e enlaçava-te e um barqueiro
brilhava na tua figura, um clamor
que cingia o fluxo nocturno. Golpeava
a negridão da neblina.
Perto, um vigor culmina.


ELE

Corria para a casa
fugia ao trabalho que maldizia.
O quarto envolvia
o aturdimento que metamorfoseava.
Lembras o horizonte? Eu
a ejaculação na madrugada. E guarda
contigo aquele bairro, apesar
de desabrigado.

A ribanceira flutuava na folhagem,
a humidade queimava.
Brandia o inacessível
que te incomodava.
O fogo, o seu fumo, o sol
a canção de cada telhado.
Ano a ano, o botão do colarinho.


EU

De súbito um medo. O atoleiro
cerrava, um nó derradeiro.
Morro. Que te acontece? (recíproca
a pergunta e impessoal) qual
a sombra de lei que te recolhe?
Enquanto eu parte de ti,
tu parte de mim?

Ter de pagar (haverá dinheiro?,
a governantes e a um povo que nos impediu)
pelo pertence difícil a difícil obtido.
O sobressalto do que continua
a não ser reconhecido.



5

Nunca separei um sorriso do amor.

Circula essa jornada confusa,
um afã não dito,
um amargo que muda

em ternura.

Tranquila vibração,
recôndita fugacidade, solta

o gemido que vai da língua à garganta,
semente de uma ave.

Enleia num alento o outro enleio.

O silêncio não precisa de provocar
o que não ouve, lá fora, na madressilva.



A glicínia a magnólia o cacilheiro
cada margem.

Um sorriso.



Joaquim Manuel Magalhães »» in Telhados de Vidro »» n.º 4 »» Maio de 2005 »» pp. 29-40

12 comentários:

  1. é um bocado avassalador escrever um comentário depois de tais poemas... acho que vou só ficar mudo e sem palavras com um lágrima no canto do olho... o 2... enfim obrigado por partilhares!

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  2. Swear Bear, bem, fica o poema para partilha futura (se não me chatearem com os direitos de autor, claro está). Nada de lágrimas. Perante isto é preciso é reagir, pôr vídeos como os que tens posto, não deixar passar a estupidez. E não perder a esperança se ainda não se perder entretanto.

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  3. Realmente qualquer palavra é supérflua perante a imensidade avassaladora de coisas que aqui transcreves (em boa hora)e que cobrem um enorme painel da vida de um homossexual; poucas vezes, raras mesmo, vi coisa assim.
    Li, reli e acho que virei ler mais vezes.
    Abraços

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  4. Obrigado por teres posto aqui este poema! Abraços!

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  5. Pinguim: o poema é suficientemente forte para dispensar comentários... avassalador, como tu bem referes. Para guardar e reler, de facto.
    Abraços

    Rato do Campo: de nada, meu caro. À falta de inspiração fica o altruísmo :)
    Abraços também para ti!

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  6. confesso que também fiquei sem palavras. Obrigado por trazeres aqui este poeta que eu ainda não conhecia. Vou investigar e concerteza comprar o livro.

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  7. Special, poderei emprestar-te a revista. Que eu saiba não foi publicado ainda em livro.
    Abraços

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  8. Obrigado Paulo mas não vale a pena. Pensei mesmo que ele já tinha algo públicado.
    Um abraço.

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  9. Ah, não tinha percebido bem... Joaquim Manuel Magalhães tem muita coisa publicada. Na poesia, aconselho-te a última edição de "Consequência do Lugar".
    Abraços

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  10. Paulo, estes teus posts estão para mim como os meus sobre b.d. estão para ti. Não sei o que dizer, não porque não tenha palavras, mas porque parecem sempre pequenas demais em comparação...
    Abraços

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  11. Estiveste bem, X! De facto, também aqui não há muito a dizer, excepto que se gosta ou não.
    Abraços!

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  12. Roubei o poema 2, para citá-lo aqui:https://www.blogger.com/comment.g?blogID=25015917&postID=192602220059575644&page=1 , onde um senhor que se assina ''mostrar nome'', diz ter a estante cheia de poetas homossexuais que não reivindicam o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

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