sábado, 20 de outubro de 2007

..:: infância revisitada 3 ::..


Um caos de memórias dispersas, iniciado com o excerto de Menina e Moça de Bernardim Ribeiro, passando pelas citações de A Alma Trocada de permeio. Num olhar geral e ligeiro, lembro-me ainda:
§ da excitação de ver os meus pais quando vinham visitar os meus avós
§ da gruta para onde imaginava que fugiria um dia e onde viveria livre como um primata (selvagem, já o era!)
§ de que gostava de me despir e andar nu no mato
§ da repugnância de mexer ou tocar na terra seca e em pó
§ da minha avó me proibir de falar com estranhos e de pedir comida à frente das visitas
§ de andar às cavalitas dos meus pais
§ que aprendi a nadar sozinho, à cão, no tanque e que desde aí fiquei com medo de mergulhar porque de vez em quando raspava a testa no fundo
§ de atravessar o rio em barcos pouco confiáveis
§ de brincar sozinho: desde pequeno que me habituei ao silêncio comigo próprio
§ de ter brincado com um lacrau (as pessoas diziam lacrário) a que achei imensa graça: fui-o desmembrando com requintes de malvadez. Só muito mais tarde me apercebi que bicho tinha sido aquele e como tinha brincado com fogo
§ simples dizia-se estreme. Quando ouvi “um copo de água simples” nem percebi o que queria dizer
§ grão-de-bico dizia-se gravanço
§ abóbora dizia-se botelha
§ ruim dizia-se rõe (como fui gozado no secundário por continuar a dizer desta forma, desconhecia que se dizia ruim)
§ de comer cerejas brancas
§ de apanhar flor de carqueja e colher a flor das tílias, ambas para chá
§ de como as minhas irmãs gostavam de mandar em mim
§ de como ficava encantado quando descobria uma pedra diferente, mas que sempre lá tinha estado, eu é que tinha passado a olhar para ela de modo diferente
§ de como gostava de picotar papel com uma agulha para construir desenhos e formas
§ da professora desesperar e ter optado por nos ensinar que havia “b” alto e “b” baixo, porque nenhum de nós percebia a diferença entre baca e vaca…
§ além da influência do dialecto do norte, havia a do sul: pinhêro, ervedêro, candeêro…
§ daquela vez em que mandei a minha avó à merda porque me mandou fazer um recado, obrigando-me a andar quilómetros de distância e de como fiquei cheio de remorsos
§ de acordar de madrugada para apanhar as espigas de milho (maçarocas, que é isso?)
§ das desfolhadas na lua cheia de Setembro
§ de chegar a casa tarde porque tinha andado a escorregar com a casca de um eucalipto numa ribanceira
§ de como ninguém se atrevia a levantar a voz quer aos avós quer aos pais, ou a qualquer outra pessoa mais velha
§ de como os banhos eram semanais nas épocas mais frescas
§ de como ouvíamos o terço religiosamente todos os dias (ao domingo não havia, não sei se agora há)
§ de encontrar ouriços-cacheiros nos carreiros
§ de pegar num cesto e ir buscar musgo para fazer o presépio
§ de pisar as uvas com os mais velhos
§ de me ter levantado, batido com a cabeça num ferro, fazendo uma contusão que teve de ser suturada. Fiquei com uma branca na cabeça
§ de, na Primavera, começar a levantar-me mais cedo para guardar as ovelhas antes de ir para a escola
§ de ter caído num carrinho de rolamento e ter esfolado brutalmente o joelho
§ do caniço e das castanhas a secarem, sendo que por baixo secavam as chouriças e às vezes nos caíam carneiros (lagartas) na comida (vinham directamente das castanhas)
§ do cheiro mágico a maçãs no sótão, tal como descrito n' A Sibila.
§ dos orgasmos secos (afinal, não existem só antes da puberdade!): tive tantos que a primeira vez que me vim mesmo, senti o esperma percorrer os canais até à expulsão. Pensei que ia morrer de luz
§ de que adormecia e as ovelhas se afastavam demais até não ouvir os seus chocalhos e entrar em pânico a julgar que tinham fugido
§ de me ter zangando com o meu colega (aquele com quem quis brincadeiras), de ter pegado numa pedra e, mesmo a uma distância considerável, lhe ter acertado na testa
§ de sair de casa dos meus avós e ir para o ciclo (agora é o 2º), foi um choque civilizacional que nunca mais parou, os espaços foram sempre crescendo em dimensão e progresso, até ao ponto de não retorno.

Há coisas fantásticas, não há?!

13 comentários:

  1. as tuas memórias de infância são fascinantes. sobretudo para quem as tem tão diferentes.
    estou deliciado a lê-las.

    miguel (innersmile)

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  2. Belíssimo. Há alturas em que estás mesmo inspirado. Ora, daqui, os meus parabéns!

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  3. Olá Miguel, acho que há coisas pelas quais todos nós passamos; outras contudo são tão pessoais e intransmissíveis que me é difícil descrevê-las. Sinceramente, penso que vivi momentos raríssimos e que experimentei outros que me poderiam ter feito muito rude e áspero. Talvez por nunca ter parado de crescer, aprendi bem a lição, o que me faz estar em paz com o que fui. Há ainda coisas que me envergonham e que guardo fechadas cá dentro, sobre as quais provavelmente nunca falarei. Mas essas não interessam.
    Um abraço.

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  4. Denise, obrigado, e eu sem comentar os teus textos sobre a homossexualidade... olha, fá-lo-ei com mais tempo, sim!
    Em todo o caso, sobre o meu estilo, sincopado, aos soluços como eu lhe chamo, lembro-me da sempre da Clarice Lispector, que tem as palavras certas em que me revejo absolutamente: "Que ninguém se engane: só se consegue a simplicidade através de muito trabalho." ( in A Hora da Estrela, p. 15.)
    Abraços

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  5. O "meu" menino é ou não é um tesouro? Que orgulho tenho nele, e como me questiono sobre o que poderei eventualmente ter feito para receber o privilégio de partilhar com ele os meus dias!

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  6. Sim, um tesouro e já menos em bruto :)
    Ó Zé, agora não que não quero chorar. O privilégio é mútuo, como sabes, e nem precisava de o registar aqui!

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  7. Muito bonito, Paulo (e Zé). Estou a ver que temos umas experiências em comum.;)
    Também cresci perto de um rio, e adorava apanhar musgo (vou ficar por aqui). Abraço Grande.

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  8. Apesar de não nos conhecermos pessoalmente, acho, acho mesmo, que temos traços de personalidade semelhantes.

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  9. Estou a adorar ler as tuas histórias de infância. Engraçado que faz-me recordar a minha, também vivi com os meus avós dos 4 aos 10 anos numa bela terrinha em Trás-os-Montes. Também adorava andar nu pelo mato, hábito que conservei até à adolescência. Agora limito-me à casa e à praia. Também me lembro do musgo para o presépio e dos banhos semanais. Não havia era o terço mas ia à igreja com a minha avó.
    Um abraço.

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  10. Esta é para o Zé, que "conheço" menos que o Paulo (está mais ausente, também): és um tipo com uma "sorte danada", pá, por teres esse tipo contigo; que assim seja para sempre.
    E para ti, Paulo, fico sem palavras quando oiço dizer-te que ias morrer de luz, ao sentires o primeiro orgasmo a sério; é lindo!!!!
    Abraço aos dois.

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  11. Dário, experiências em comum? Mas isso é giro. Os rios são o máximo. Esqueci-me de dizer que quando ia guardar as cabras para as margens (estava já com os meus pais), muitas vezes tomava banho nu. Apanhar musgo é tão engraçado! A mim encantava-me e ainda me encanta fazer isso e montar o presépio, mas cada vez o faço menos.
    Abraços

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  12. Special K, também temos algumas coisas em comum, está visto! Eu também mantive o hábito de andar nu até bastante tarde. É engraçado como estas coisas se descobrem e partilham. Quanto à igreja, também íamos, mas como ficava longe era só de vez em quando. Abraços

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  13. Pinguim, olha o Zé leu o teu comentário, mas não respondeu porque já se foi, outra vez!
    Olha que me lembro bem do episódio e digo-te que foi um misto de sensação dolorosa e de prazer. Foi muito complicado, até porque pensei poder reverter o que sentia, mas aquilo continuou e, quando saiu, fiquei a olhar e intriguei-me sobre o que seria. Meu deus, no que dá a ignorância! :))
    Mais abraços

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