terça-feira, 30 de outubro de 2007

..:: louvor à minha 2ª mãe ::..

Há 37 anos que vieste. Não tenho oportunidade de estar contigo e de te dar o típico abraço que faz os nossos corações tocarem-se, abrindo as comportas dos nossos rios. Mas gosto muito de ti! Sei que perdeste a vontade de comemorar aniversários depois da ausência do pai, tal como eu que também nunca gostei de lembrar o dia em que vim.

Enervaste-te tantas vezes comigo por ser amorfo e reservado; e eu contigo por seres áspera e bruta. Obrigaste-me muitas vezes à acção, a mexer-me, o que foi bom porque nunca tive nada de bandeja e assim aprendi mais do que se ignorasse as tuas ordens. Apesar do feitio de escorpião, tenho tacto para lidar com o teu fogo e é fácil percebermos tudo nos nossos olhos, até porque sei que a vida também nunca te foi fácil e generosa. Lamento tanto que não tenhas tido as condições para teres podido estudar; que os avós te tenham feito refugiada e que tivesses de ficar doente para te libertarem! Lembro-me tão bem de ter ficado agoniado, em desespero, com as tuas dores brutais naquele Verão quente e abafado; tu sem forças, com uma dieta rigorosíssima e, depois e em consequência, a anemia. Gosto de pensar que nascemos fortes e que tu vieste com a força demolidora de uma caterpillar, aquela força que te salvou tantas vezes do precipício.
Em Castelo Branco, almoçávamos e o resto do dia era comigo. No início, atravessava a cidade quase toda a pé, mas mudaste-te várias vezes para ficarmos mais próximos e conheci-te quatro casas e coabitámos em duas, sempre com mais mulheres lá em casa, amigas ou colegas de trabalho. Às vezes, saíamos à noite, dançávamos na Repvblica, quando bebias mais era um drama porque choravas como uma madalena, víamos o nascer do dia e apanhávamos o autocarro em direcção à aldeia para o fim-de-semana.
Conheceste o Tó, namoraste e acabaram casados. Convidaste-me e fui o vosso padrinho. Houve várias momentos em que me alojaste sem contrapartidas, mas eu nunca aguentei muito tempo porque prezava demais a liberdade de poder fazer o que me apetecia. Lembras-te de que uma vez o Tó puxou o assunto da homossexualidade por causa de eu estudar na FLUL? Só lhe disse que conhecia demasiad@s para os poder criticar e censurar e que era muito fácil falar e julgar mal o que não se conhece.
Há dez anos, nasceu o Jotapê e convidaste-me e fui o padrinho. Parece-me claro que sempre me puxaste e eu sempre resvalando. Com o Jotapê, a coisa foi estranha: podia ter nascido em qualquer dia de Abril, mas teve de se antecipar e nascer exactamente um ano depois da nossa avó ter partido contrariada para uma outra dimensão. Foi um sinal que nunca soube interpretar. Tanto eu como o Zé, gostamos muito do Jotapê que se tornou sensato e simpático [um aparte: tenho 5 sobrinhos e só 2 sobrinhas]. Se a inteligência, a emoção e a felicidade se medicassem, dar-lhe-ia os comprimidos para ser a melhor e mais plena pessoa do mundo. Por várias vezes, fiquei com o Jotapê e fazia tudo como me ensinaste: a mudar a fralda, a ler-lhe e a inventar histórias, a dar-lhe comida e a endurecer a voz para me obedecer. Dar-lhe comida era mesmo a tarefa mais inglória e que me enfurecia. Apetecia-me abrir-lhe a boca e à bruta enfiar-lhe a refeição boca abaixo, sem complacência. Nos seus dez anos, já percebeu que não sou o tio típico: casado, com carro, com filhos e uma vidinha comum.
(2000, desenho não-figurativo do Jotapê sobre uma planificação da altura)



Muitos parabéns!

P.S. Quando é que nos cortarão o cordão umbilical?

7 comentários:

  1. Querido Paulo, é tão bom ter uma irmã assim, tão amiga, e que sabemos que estará sempre ali, firme, ao nosso lado. Como vês, há coisas maravilhosas na tua vida. Muitos parabéns à tua 2ª mãe.

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  2. Tens razão, Denise, não me posso queixar: afinal tenho pessoas incríveis no meu percurso e na minha vida. Acho que às vezes mes esqueço disso. Um destes dias, lembrei-me disto: devo ter sido feito a sorrir, a dormir e a resmungar. São três das coisas que as pessoas mais me apontam. Quem me conhece menos acha que estou sempre a sorrir, quem me colher melhor considera que não paro de reclamar e quem me conhece ainda melhor sabe que eu e o sono andamos de braço dado. Ultimamente, até nem tenho dormido muito!
    Abraços

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  3. Oh pa, tu nao podes escrever estas coisas que eu, aqui, longe, estremeco e lembro-me de coisas, ali, longe tambem!

    PARABENS a mana!

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  4. Pois é ... "estremecer" é precisamente a palavra...

    Não escrevas estas coisas que me enches os olhos de água ...
    (que estranha que ando ...)

    Sabes aquela frase: " há pessoas que fazem do Sol uma simples mancha amarela...há outras que duma simples mancha amarela fazem o próprio Sol..."
    Pois Picasso disse isso e acho que tu és desses gajos :)))))

    Um beijinho com carinho

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  5. Parabéns á tua irmã e parabéns também para ti por tão bela e sentida homenagem. Um abraço

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  6. Meu querido Paulo
    as ausências provocam isto: grandes atrasos nos comentários; quero dar-te os parabéns pelo aniversário da tua irmã, mas também a ti, pela forma tão maravilhosa como te referes a ela; as relações entre irmãos nem sempre são fáceis. Eu tenho 4 e sou uma espécie de para-raios das trovoadas que de vez em quando ecoam (tenho um irmão e uma irmã que não se falam há anos) e que perturbam, é claro o bom ambiente familiar.
    Mas é principalmente com a minha irmã mais velha e que pouca diferença de idade faz de mim, que há uma maior cumplicidade; pena é que esteja tão longe, pois vive no Brasil.
    Abração.

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