sábado, 20 de outubro de 2007

..:: infância revisitada (extra 1) ::..

Entusiasmado com as reacções, cá vai uma história da infância suplementar. O texto que se segue foi escrito no âmbito do seminário de mestrado sobre a autobiografia e intimismo com a ilustre e sempre incrível e sempre surpreendente Professora Paula Morão. Novamente, quase se me molham os olhos de saudades das experiências do lugar e das pessoas que já cá não estão. Nada voltou a ser como era.

*******
Uma memória de infância

Vou contar uma história. Quando era criança, contavam-me tantas histórias, mas, ou porque fosse demasiado novo ou distraído, não vislumbrava a sua amplitude. A que eu vou contar agora é simples. Uma história simples, como a que David Lynch contou.
Fui para casa dos meus avós um pouco antes de ter entrado para a primeira classe. Vivíamos numa casa isolada na encosta de uma serra. Apesar das privações que lá se passavam, não as percebia. Vim a percebê-las depois, quando adolescente e foi uma descoberta interessante porque, no mesmo instante, percebi que não podia ter tido riqueza maior, isto é, a modéstia em bens era proporcionalmente inversa em experiências de grande e inigualável riqueza. Tenho tantas saudades daquele tempo sem tempo, ameno e despreocupado. Quase se me molham os olhos. Os caminhos que percorria, os montes, as ovelhas, a escola, os meus avós, os conhecidos e os estranhos, eram o meu mundo, mas nem só deles era ele constituído.
Quando os meus pais nos visitavam, rejubilava de alegria. Sentia-lhes a falta, apesar do carinho insubstituível dos meus avós. Às vezes, vinham os meus tios de Lisboa. Vinham pouco porque ficava longe, não conseguia imaginar o que seria Lisboa. Todos eles traziam coisas que me davam um imenso gozo, raridades naquelas paragens. Numa dessas vezes, a tia Alzira trouxe velas. Bom, velas já eu conhecia bem, sobretudo as da capela de S. Lourenço. Eram todas iguais. Mas as da tia Alzira, não. Eram coloridas!!! Foi um espanto (agora sou eu que me espanto com as ideias que se cruzavam no meu cérebro)! A minha avó, como boa gestora daquela modesta e imensa casa, escondia todos os presentes nas enormes arcas do sótão, entre as mantas e as sacas de cereais. Eu tratava de os descobrir. É óbvio que descobri as velas, mas para que serviriam? Não tinham cheiro, eram azuis e cor-de-rosa. Claro, tinham de arder para que se cumprisse a sua missão.
As noites começavam cedo, não havia electricidade e rapidamente me cansava de estudar com a ténue luz da candeia de azeite. Deitávamo-nos. A minha cama era estreita e alta, de ferro. Se as velas têm de arder que seja de noite, na escuridão e no sono dos outros lá de casa. Então, quando todos dormiam, levantava-me, movia as mantas e a colcha que escondia a zona debaixo da cama, acendia um fósforo e uma vela. Deleitava-me a vê-la arder. Ficava ali encolhido, não sei, mas se calhar durante uma ou duas horas. Às vezes, inclinava-a e admirava a cera a agarrar-se no soalho de madeira. Também gostava de moldar a cera com os dedos enquanto não voltava a ficar completamente sólida. Depois, satisfeito, voltava para a cama.
Era uma criança solitária, mas gostava daquela solidão. E a verdade é que continuo a gostar. Podia pensar sozinho e ninguém interferia na minha imaginação, nos meus mundos de realidades voláteis, frágeis, simbólicas, efémeras ou não. Ultrapassava os limites daquelas serras, e foi nessa altura que aprendi a viajar. Por isso adorava guardar as ovelhas. A serra tinha recantos que considerava só meus, tal como a cera colada ao soalho debaixo da cama. Nunca ninguém conheceu as minhas viagens que a partir daí fazia. Um dia, a minha avó tinha mudado a cama e pôs a descoberto um dos meus locais de embarque. Ali estava o produto do meu delito, à espera de ser removido por mim. Tinha derretido, à vontade, uma dúzia de velas. Poucas restavam. Lição aprendida: valia mais viajar enquanto tomava conta das ovelhas, aí poderia esconder-me nas tocas dos castanheiros, fugindo dos homens invisíveis que me perseguiam, ou imaginar, numa laje de xisto, um santuário de uma qualquer Nossa Senhora que haveria de me aparecer, porque também eu era pastorinho.
Transformar a realidade era a minha tarefa e o meu vício, o pão da minha subsistência; era a droga, o grão minúsculo que cresceu e encheu o meu mundo, o meu universo luminoso,/ cheio de formas, de rumor, de lida,/ de forças, de desejos e de vida (...) (“Nirvana”)*. Sonho que sou um cavaleiro andante./ Por desertos, por sóis, por noite escura,/ paladino do amor, busco anelante/ o palácio encantado da Ventura!// Mas já desmaio, exausto e vacilante,/ quebrada a espada já, vasta a armadura.../ e eis que súbito o avisto, fulgurante/ na sua pompa e aérea formosura! (...) (“O Palácio da Ventura”)*.


* Antero de Quental


Paulo / Nov. de 2002

12 comentários:

  1. Bem... isto aqui anda com uns níveis de produtividade impressionantes. A consequiência é que fiquei subitamente desejoso de ler a "Alma trocada", nostálgico e com saudades de ver o Jô mais amiúde... :)

    Abraço

    ResponderEliminar
  2. HELPPPPPPPPPPP

    TOU A FICAR BICIADA EM VIR AQUIIIIIIIIII :)))))


    Beijinhos e CONTINUA ASSIM ...

    ResponderEliminar
  3. Que história deliciosa, lindo esse teu escape com as velas. Também gosto de brincar com a cera das velas e de me evadir num passeio pelo campo, só eu os pássaros e as cigarras. Um abraço.

    ResponderEliminar
  4. Amigo Paulo
    muito bem comparada esta história da tua meninice ao filme "Uma história simples" do David Lynch, pois como o filme, trata-se de uma história "banal" mas tão rica de sentido e de sentimentos; como o filme, comoveu-me.
    Continua a partilhar connosco as tuas histórias de infãncia, por favor...
    Abraço.

    ResponderEliminar
  5. Olá Maurice. Ficar sozinho dá nisto. O Jô é o máximo e A Alma Trocada, como acho que deu para perceber, tem tiradas excelentes.
    Abraços

    ResponderEliminar
  6. Ó Sónia, cuidado com a adição. Bom, pelo menos aqui não terás efeitos indesejáveis ou consequências nefastas :), portanto volta sempre e volta muito.
    Abraços

    ResponderEliminar
  7. Special K, a minha infância foi profícua em momentos deprimentes e hilariantes. Quando ao desejo de campo, será por sermos capricornianos?
    Abraços

    ResponderEliminar
  8. Pinguim, as minhas histórias são muito simples e lineares. Não sei se me comovem só a mim, mas Uma História Simples conseguiu comover-me. Quanto a mais histórias da infância, vou parar um pouco e avançar na idade, porque nem tudo foi bucólico e idílico!
    Abraços

    ResponderEliminar
  9. Muito bem, Paulo pastorinho. Obrigada pela partilha deste texto que, para além de me mostrar um pouco mais de ti, me fez lembrar, pelo contexto em que foi escrito, os saudosos tempos com a Profª PMorão. Tive sempre muitoa curiosidade em saber o resultado desse trabalho que ela nos deu para fazer. O teu está belíssimo. O meu, enviei-o para a História Devida e acabei por publicá-lo no meu blogue.
    Um beijinho

    ResponderEliminar
  10. Denise, eu tinha lido a tua História Devida (pensava que te tinha dado algum feed-back)! A minha ficou-se pelo papel e agora aqui, virtual. Não sei se este trabalho deu algum resultado. Não me lembro do resultado!
    Beijinhos

    ResponderEliminar
  11. Paulo: só agora tive tempo de me virar para aqui. E só te digo isto: gostei muito!

    ResponderEliminar
  12. Amigo Luís, obrigado pelo comentário e por vindo cá tão atrás no tempo... A tua simpatia e as tuas palavras ajudam-me a levantar a moral :)
    grande abraço!

    ResponderEliminar

»» responderemos quando tivermos tempo
[se tivermos tempo] »» se os
comentários de algumas entradas estiverem bloqueados é porque não estamos cá, não há tempo para olhar para o lado, ou essas entradas não têm nada para comentar.

»»
obrigado pela visita!