terça-feira, 30 de outubro de 2007

..:: as cores do passado ::.. o secundário (versão condensada)

Cheguei a Castelo Branco no dia em que começaram as aulas do 10º ano. Nunca antes lá tinha posto os pés. Não fui nem para Coimbra nem para outro sítio qualquer porque a minha irmã mais chegada vivia e trabalhava lá. Não conhecia nada da cidade e nunca estudei no distrito a que pertencia (nessa altura, a educação por aquelas bandas ainda era um luxo).
Aprendi a ficar ainda mais sozinho, a cozinhar para mim e a adormecer sem ninguém em casa. Não foi um período alegre, mas também não houve dramas, fiz amigos e falava que me desunhava.
Tive três grandes amigos a quem perdi o rasto: a Fátima, o José e a São. Éramos colegas e fazíamos algumas coisas em conjunto, conversávamos muito e sobre todas as coisas que nos inquietavam (quer dizer: nunca falei do que me inquietava): o sermos incompreendidos, quanto a vida era difícil, a sensibilidade, as hormonas aos pulos.
Como expliquei aqui, tinha 16 anos quando percebi o que era. Com a Fátima, em conversas, confessei-lhe que havia de ser grande, que sairia da merdaleja, e fintaria o destino que me esperava. Percebi, ainda que dessa forma me vingaria dos que no básico tanto tinham zombado de mim. O Skyborg utiliza para classificar a sua terra um epíteto que usei muitas vezes para me referir àquela aonde fiz o básico. Castelo Branco, por seu lado, serviu para me livrar das más (péssimas) memórias dessa puta de terrinha.
Foi em Castelo Branco que comecei a comprar revistas porno especificamente gay, o que não era nada fácil numa cidade pequena e um prolongamento da ruralidade envolvente, mas descobri um quiosque onde as podia encomendar. O vendedor tinha uma série de trejeitos que me incomodavam significativamente. Decidi que não queria ser assim, mas que tinha de ser genuíno sem me expor demasiado e que tinha de transmitir uma imagem correctíssima dos meus actos.
Tudo passou, sempre com o fito na minha vingança de trazer por casa, que acabou por ser muito fácil de concretizar: cresci o suficiente para ser capaz dos enfrentar e confrontar. Deixei de querer ser famoso, mas nunca de crescer. Dizia-me a Fátima, ainda mais pessimista, que eu sonhava muito, demasiado, e que a vida não era nada assim. De facto, nem sempre as coisas correram como a minha razão tinha programado. Neste momento, sou o que naquela altura quis ser: feliz, genuíno, transparente e sem preconceitos.

13 comentários:

  1. Mais uma vez as nossas histórias são muito similares. E como tu também eu me tornei naquilo que queria. Parabéns!!!

    ResponderEliminar
  2. X, :). A vida é curiosa, já passei por fases em que achei que tinha errado completamente o alvo e desconhecia qual o meu fito em continuar a andar. Digamos que, agora, só preciso de ir com calma porque cheguei. Não foi fácil, mas tb não sou nenhum herói!
    Parabéns também a ti (e a todos os outros) que te tornaste no que querias. Como se diz nos Génesis: "E Deus viu tudo o que havia feito, e viu que era bom" e mai nada.
    Abraços

    ResponderEliminar
  3. Sabe bem saber que alguém reagiu e lutou contra em vez de se contentar com a mediocridade anunciada. Cada dia mais me parece que é uma decisão a passar de moda. É insuportável ver a falta de objectivos de vida, a alienação dominante. Basta fazer uma viagem de comboio ou metropolitano para ver a qualidade da grande literatura que preenche as cabeças e as ambições.
    Quando eu tinha exactamente trinta e um anos pensei ter atingido os meus objectivos - era um homem de sucesso. Como me enganei meu Deus. Hoje com quarenta e oito sinto que estou a caminho, que vou conseguindo concretizar alguns objectivos, vou construindo felicidade e fico feliz por consegui-lo. Será da maturidade?
    Yoseph

    ResponderEliminar
  4. É curioso, também foi em Castelo Branco, que pela primeira vez, comecei a viver sòzinho, fora do ambiente familiar.

    ResponderEliminar
  5. Não há medida para o sonho.

    Também eu, duma maneira ou doutra, consegui o que quis sempre - ler -:D, não sei fazer mais nada.
    Ontem ficaste a saber, por um post que coloquei, um pouco, muito pouco do que fiz. Foram pessoas como tu que me ajudaram a aceitar a minha diferença, e claro que as diferenças não são as mesmas para todos.
    lili

    ResponderEliminar
  6. Olá Yoseph,
    confesso que nunca agi conscientemente, que nunca lutei contra a mediocridade de forma deliberada. Foi sempre uma força qualquer que me conduziu e eu deixe-me ir. Porque tinha de ser? Só a partir de certa altura é que achei que tinha alguma coisa a fazer. E tive de lutar muito e em várias frentes. Hoje, quando olho para os alunos que me aparecem pela frente, até me arrepia a ausência de tudo, porque têm tudo e se não têm roubam.
    Quanto a conseguir objectivos: acho que é preciso ir aos poucos, nunca pôr a fasquia muito alta e nunca perder de vista o fim porque lutamos. Provavelmente é a tua maturidade que te dita os passos, noutros casos, é só a intuição.
    Abraços

    ResponderEliminar
  7. Pinguim, engraçado a experiência comum! A tua deve ter sido há mais tempo :), a minha experiência da cidade foi estranha. Já lá voltei depois e não gostei de ver a cidade que me parece mortiça, mas pode ser só uma impressão minha.
    Abraços

    ResponderEliminar
  8. Olá Lili,
    gosto de saber que os sonhos não têm medida! Em todo o caso, convém não abusar na extensão!
    Não sabes fazer mais nada além de ler? Hum, porque é que eu não acredito?
    A diferença... somos todos diferentes, inclusive na sexualidade. Não me esqueço que o Joaquim Manuel Magalhães, que foi professor do Zé e não meu na FLUL, disse uma vez que havia tantas sexualidades quantas pessoas há no mundo.
    Abraços

    ResponderEliminar
  9. Essa eu tenho de contar para o meu amigo Opiário:)

    Ele gosta muito do Joaquim Manuel Magalhães.

    ResponderEliminar
  10. Lili, e conheces (conhecem) o poema "homossexualidade" dele (Joaquim Manuel Magalhães)?

    ResponderEliminar
  11. Eu não, passa para cá, sff:D

    Vou-te gamar os vídeos do filme A Outra Margem, segundo li no "Da Literatura" o filme não está a ser devidamente publicitado, não sei, o Eduardo Pitta lá terá as razões dele para o afirmar.

    Também gostei de ver os vídeos contra a homofobia, que só hoje tive tempo para ver.

    Recebeste algum comentário meu repetido? Isto, às vezes, não mostra nada.

    ResponderEliminar
  12. Lili, até agora não recebi nenhum comentário teu repetido! Tem vindo tudo direitinho!
    Quanto ao poema, tenho de o digitalizar! e ainda é bastante longo, e modo que fica para quando tiver mais tempo, ok!
    Quanto a Outra Margem, não sei se o filme está a ser bem divulgado, mas parece-me interessante. Esperamos vê-lo nestes dias.
    Abraços

    ResponderEliminar

»» responderemos quando tivermos tempo
[se tivermos tempo] »» se os
comentários de algumas entradas estiverem bloqueados é porque não estamos cá, não há tempo para olhar para o lado, ou essas entradas não têm nada para comentar.

»»
obrigado pela visita!