quinta-feira, 1 de novembro de 2007

..:: as cores + palavras que nos salvam ::.. Álvaro de Campos

Vale a pena passar por Consiliense e ver as fotos da tristeza tiradas por Evelyn. Por outro lado, e para animar, a selecção de nus feita pela Denise no Rabiscos e Garatujas.

*****

Hoje estou triste como um barco negro ao sol.
Minha alegria foi-se embora com as malas.
Meu coração anda por casa do silêncio
Abrindo as portas e espreitando para os quartos.
E tudo isto, que não tem nenhum sentido,
É o sentido essencial da minha vida...

Lembro-me bem do seu olhar.
Ela atravessa ainda a minha alma
Como um risco de fogo na noite.
Lembro-me bem do seu olhar. O resto...
Sim o resto parece-me apenas com a vida.

Ontem, passei nas ruas como qualquer pessoa.
Olhei para as montras despreocupadamente
E não encontrei amigos com quem falar.
De repente vi que estava triste, mortalmente triste,
Tão triste que me pareceu que me seria impossível
Viver amanhã, não porque morresse ou me matasse,
Mas porque seria impossível viver amanhã e mais nada.

Fumo, sonho, recostado na poltrona.
Dói-me viver como uma posição incómoda.
Deve haver ilhas lá para o sul das cousas .
Onde sofrer seja uma cousa mais suave,
Onde viver custe menos ao pensamento,
E onde a gente possa fechar os olhos e adormecer ao sol
E acordar sem ter que pensar em responsabilidades sociais
Nem no dia do mês ou da semana que é hoje.

Abrigo no meu peito, como a um inimigo que temo ofender,
Um coração exageradamente espontâneo
Que sente tudo o que eu sonho como se fosse real
Que bate com o pé a melodia das canções que o meu pensamento canta,
Canções tristes, como as ruas estreitas quando chove.

Dai-me rosas e lírios,
Dai-me flores, muitas flores,
Quaisquer flores, logo que sejam muitas …
Não, nem sequer muitas flores, falai-me apenas
Em me dardes muitas flores.
Nem isso… Escutai-me apenas pacientemente quando vos peço
Que me deis flores…
Sejam essas as flores que me deis…

Ah, a minha tristeza dos barcos que passam no rio
Sob o céu cheio de sol!
A minha agonia da realidade lúcida!
Desejo de chorar absolutamente como uma criança
Com a cabeça encostada aos braços cruzados em cima da mesa,
E a vida sentida como uma brisa que me roçasse o pescoço,
Estando eu a chorar naquela posição.

O homem que apara o lápis à janela do escritório
Chama pela minha atenção com as mãos do seu gesto banal.
Haver lápis, e aparar lápis, e gente que a; apara à janela é tão estranho!
É tão fantástico que estas cousas sejam reais!
Olho para ele até esquecer o sol e o céu.
E a realidade do mundo faz-me dores de cabeça.

A flor caída no chão.
A flor murcha (rasa branca amarelecendo)
caída no chão…
Qual é o sentido da vida
(que sentido tem a vida?)


Álvaro de Campos »» Poemas de Álvaro de Campos »» edição de Cleonice Berardinelli, Série Menor »» INCM »» 1992 »» pp. 267-269

7 comentários:

  1. Obrigada pela referência, Paulo. Espero que o poema não reflicta o teu estado de espírito actual. Se assim for, afugenta-o ou ignora-o, sabendo que tem duração limitada.
    Gostei muito da selecção da margem direita, »um mundo de máscaras«.
    Um beijinho
    D

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  2. Adicionaste-me ao teu grupo de LJ Friends e eu acabo de retribuir. Não tenho de momento actividade bloguista para além de visitat amigos, vou passar a visitar-te também. Já tinha reparado nos teus comentários em blogues de amigos comuns. Reparado positivamente ;-).
    Quanto a este lindissimo poema de Alvaro de Campos, faço minhas as palavras do comentarista anterior, espero que não tenha nada de sentimento teu pessoal actual... se tiver, bora passar por cima e viver a vida com os amigos! ;-)))

    Abração do Mario_o_tal ;-))

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  3. Mario_o_tal, pequena correcçãozinha: dA comentarista anterior. dA. :)

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  4. Denise, não tens que agradecer! Era bom que, mas sim reflecte. Quando a tristeza não tem um rosto definido (ou tem?), os dias tornam-se difíceis. Sim, há-de passar!
    E há máscaras engraçadas, não há?
    Abraços

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  5. Olá Mario_o_tal, pois desde Junho que extinguiste a tua dimensão virtual. Compreendo as razões que alegaste: a vida é mesmo cá fora. Portanto, compreendi ainda o "risco" de te associar e fi-lo porque tenho reparado que continuas a comentar. Portanto, virtualmente, ainda existes :)
    Quanto à parte positiva, obrigado, vou fazendo o possível (até aguentar esta realidade virtual :))
    O poema é um dos meus preferidos do Campos, logo por causa do primeiro poema. E foi escolhido conforme as cores deste dia. Vai passar. Sei que sim (espero que seja depressa). Um grande abraço!

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  6. Sim, virtualmente vou continuar a existir. Estamos sempre a tempo de corrigir excessos. Prefiro a vida real, é essa que quero viver em pleno mas, sobra sempre um tempinho para virtualidades.

    Denise o sexo nestas coisas não é assim tão importante moça! Mas, corrijo tudo o que quiseres para te sentires bem :-)))

    Abraços e beijos do Mario_o_tal

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  7. Mario_o_tal, repito, a realidade é sempre melhor que a virtual, sempre. Fazes muito bem em concentrar-te na tua vida real.
    Abraços

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